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viernes, 27 de enero de 2012

Poemas Malditos, Álvares de Azevedo


Poemas Malditos, Álvares de Azevedo

Texto proveniente de:

A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.
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Poemas Malditos


Álvares de Azevedo

Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade da bela mulher a quem amamos. Cuidado, leitor, ao voltar esta página!

ÁLVARES DE AZEVEDO

PREFÁCIO
Cuidado leitor, ao voltar esta página!
Aqui dissipa‑se o mundo visionário e platônico. Vamos entrar num mundo novo, terra fantástica, verdadeira ilha Barataria de D. Quixote, onde Sancho é rei, e vivem Panúrgio, sir John Falstaff, Bardolph, Fígaro e o Sganarello de D. João Tenório I—a pátria dos sonhos de Cervantes e Shakespeare.

Quase que depois de Ariel esbarramos em Caliban.
A razão é simples. É que a unidade deste livro funda‑se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram este livro, verdadeira medalha de duas faces.
Demais, perdoem‑me os poetas do tempo, isto aqui é um tema, senão mais novo, menos esgotado que o sentimentalismo tão fashionable desde Werther e René
Por um espírito de contradição, quando os homens se vêem inundados de páginas amorosas, preferem Um conto de Boccaccio, uma caricatura de Rabelais, uma cena de Falstaff no Henrique IV de Shakespeare, um provérbio fantástico daquele polisson, Alfred de Musset, a todas as ternuras elegíacas dessa poesia de arremedo que anda na moda, e reduz as mordas de oiro sem liga dos grandes poetas ao troco de cobre, divisível até ao extremo, dos liliputianos poetastros.
Antes da Quaresma há o Carnaval.
Há uma crise nos séculos como nos homens. é quando a poesia cegou deslumbrada de fitar‑se no misticismo, e caiu do céu sentindo exaustas as suas asas de oiro.
O poeta acorda na terra. Demais, o poeta é homem. Homo sum, como dizia o célebre Romano. Vê, ouve, sente e, o que é mais, sonha de noite as belas visões palpáveis de acordado Tem nervos, tem fibra e tem artérias—isto é, antes e depois de ser um ente idealista, é um ente que tem corpo. E, digam o que quiserem, sem esses elementos, que sou o primeiro a reconhecer muito prosaicos, não há poesia.
O que acontece? Na exaustão causada pelo sentimentalismo, a alma ainda trêmula e ressoante da febre do sangue, a alma que ama e canta porque sua vida f' amor e canto, o que pode senão fazer o poema dos amores da vida real? Poema talvez novo, mas que encerra em si muita verdade e muita natureza, e que sem ser obsceno pode ser erótico sem ser monótono. Digam e creiam o que quiserem. Todo o vaporoso da visão abstrata não interessa tanto como a realidade formosa da bela mulher a quem amamos.
O poema então começa pelos últimos crepúsculos do misticismo, brilhando sobre a vida como a tarde sobre a terra. A poesia puríssima banha com seu reflexo ideal beleza sensível e nua.
Depois a doença da vida, que não dá ao mundo objetivo cores tão azuladas como o nome britânico de blue devils, descarna e injeta de fel cada vez mais o coração. Nos mesmos lábios onde suspirava a monodia amorosa, vem a sátira que morde.
É assim. Depois dos poemas éticos, Homero escreveu o poema irônico. Goethe depois de Werther criou o Faust. Depois de Parisina e o Giaour de Byron vem o Cain e Don Juan—Don Juan que começa como Cain pelo amor, e acaba como ele pela descrença venenosa e sarcástica.
Agora basta.
Ficarás tão adiantado agora, meu leitor, como se não lesses essas páginas, destinadas a não ser lidas. Deus me perdoe! assim é tudo! até os prefácios!


UM CADÁVER DE POETA






Levem ao túmulo aquele que parece um cadáver! Tu não pesaste sobre a ferra: a terra te seja leve!






L. UHLAND






I






De tanta inspiração e tanta vida


Que os nervos convulsivos inflamava


E ardia sem conforto.. .


O que resta? uma sombra esvaecida,


Um triste que sem mãe agonizava . .


Resta um poeta morto!






Morrer! e resvalar na sepultura.


Frias na fronte as ilusões—no peito


Quebrado o coração!


Nem saudades levar da vida impura


Onde arquejou de fome . . sem um leito!


Em treva e solidão!






Tu foste como o sol; tu parecias


Ter na aurora da vida a eternidade


Na larga fronte escrita. . .


Porém não voltarás como surgias!


Apagou‑se teu sol da mocidade


Numa treva maldita!






Tua estrela mentiu. E do fadário


De tua vida a página primeira


Na tumba se rasgou...


Pobre gênio de Deus, nem um sudário!


Nem túmulo nem cruz! como a caveira


Que um lobo devorou!. . .






II






Morreu um trovador—morreu de fome.


Acharam‑no deitado no caminho:


Tão doce era o semblante! Sobre os lábios


Flutuava‑lhe um riso esperançoso.


E o morto parecia adormecido.






Ninguém ao peito recostou‑lhe a fronte


Nas horas da agonia! Nem um beijo


Em boca de mulher! nem mão amiga


Fechou ao trovador os tristes olhos!


Ninguém chorou por ele... No seu peito


Não havia colar nem bolsa d'oiro;


Tinha até seu punhal um férreo punho...


Pobretão! não valia a sepultura!






Todos o viam e passavam todos.


Contudo era bem morto desde a aurora.


Ninguém lançou‑lhe junto ao corpo imóvel


Um ceitil para a cova!. . nem sudário!






O mundo tem razão, sisudo pensa,


E a turba tem um cérebro sublime!


De que vale um poeta—um pobre louco


Que leva os dias a sonhar—insano


Amante de utopias e virtudes


E, num tempo sem Deus, ainda crente?






A poesia é de cerco uma loucura,


Sêneca o disse, um homem de renome.


É um defeito no cérebro.. Que doudos!


É um grande favor, é muita esmola


Dizer‑lhes bravo! à inspiração divina,


E, quando tremem de miséria e fome,


Dar‑lhes um leito no hospital dos loucos...


Quando é gelada a fronte sonhadora,


Por que há de o vivo que despreza rimas


Cansar os braços arrastando um morto,


Ou pagar os salários do coveiro?


A bolsa esvazia por um misérrimo


Quando a emprega melhor em lodo e vício!






E que venham aí falar‑me em Tasso!


Culpar Afonso d'Este—um soberano!—


Por que não lhe dar a mão da irmã fidalga!


Um poeta é um poeta—apenas isso:


Procure para amar as poetisas!


Se na Franca a princesa Margarida,


De Francisco Primeiro irmã formosa,


Ao poeta Alain Chartier adormecido


Deu nos lábios um beijo, é que esta moça,


Apesar de princesa, era uma douda,






E a prova é que também rondós fazia.


Se Riccio o trovador obteve amores


—Novela até bastante duvidosa—


Dessa Maria Stuart formosíssima,


É que ela—sabe‑o Deus!—fez tanta asneira,


Que não admira que um poeta amasse!






Por isso adoro o libertino Horácio.


Namorou algum dia uma parenta


Do patrono Mecenas? Parasita,


Só pedia dinheiro—no triclínio


Bebia vinho bom—e não vivia


Fazendo versos às irmãs de Augusto.






E quem era Camões? Por ter perdido


Um olho na batalha e ser valente,


As esmolas valeu. Mas quanto ao resto,


Por fazer umas trovas de vadio,


Deveriam lhe dar, além de glória


—E essa deram‑lhe à farta—algum bispado,


Alguma dessas gordas sinecuras


Que se davam a idiotas fidalguias?






Deixem‑se de visões, queimem‑se os versos.


O mundo não avança por cantigas.


Creiam do poviléu os trovadores


Que um poeta não val meia princesa.






Um poema contudo, bem escrito,


Bem limado e bem cheio de tetéias,


Nas horas do café lido fumando,






Ou no campo, na sombra do arvoredo,


Quando se quer dormir e não há sono,


Tem o mesmo valor que a dormideira.






Mas não passe dali do vate a mente.


Tudo o mais são orgulhos, são loucuras!


Faublas tem mais leitores do que Homero. . .






Um poeta no mundo tem apenas


O valor de um canário de gaiola. . .


É prazer de um momento, é mero luxo.


Contente‑se em traçar nas folhas brancas


De um Álbum da moda umas quadrinhas.


Nem faça apelações para o futuro.


O homem é sempre o homem. Tem juízo:


Desde que o mundo é mundo assim cogita.






Nem há negá‑lo—não há doce lira


Nem sangue de poeta ou alma virgem


Que valha o talismã que no oiro vibra!


Nem músicas nem santas harmonias


Igualam o condão, esse eletrismo,


A ardente vibração do som metálico...






Meu Deus! e assim fizeste a criatura?


Amassaste no lodo o peito humano?


Ó poetas, silencio! é este o homem?


A feitura de Deus a imagem dele!


O rei da criação!. . .






Que verme infame!


Não Deus, porém Satã no peito vácuo


Uma corda prendeu‑te—o egoísmo!


Oh! miséria, meu Deus! e que miséria!






III






Passou El‑Rei ali com seus fidalgos.


Iam a degolar uns insolentes


Que ousaram murmurar da infâmia régia,


Das nódoas de uma vida libertina!


Iam em grande gala. O Rei cismava


Na glória de espetar no pelourinho


A cabeça de um pobre degolado.


Era um rei bon‑vivant, e rei devoto;


E, como Luís XI, ao lado tinha


O bobo, o capelão e seu carrasco.






O cavalo do Rei, sentindo o morto,


—Trêmulo de terror parou nitrindo.


Deu d'esporas leviano o cavaleiro


E disse ao capelão:






"E não enterram


Esse homem que apodrece, e no caminho


Assusta‑me o corcel?"


Depois voltou-se






E disse ao camarista de semana:


"Conheces o defunto? Era inda moço.


Faria certamente um bom soldado.


A figura é esbelta! Forte pena!


Podia bem servir para um lacaio."






Descoberto, o faceiro fidalgote


Responde‑lhe fazendo a cortesia:


"Pelas tripas do Papa! eu não me engano,


Leve‑me Satanás se este defunto


Ontem não era o trovador Tancredo!"






"Tancredo"! murmurou erguendo os óculos


Um anfíbio, um barbaças truanesco.






Alma de Tribouler, que além de bobo


Era o vate da corte—bem nutrido,


Farto de sangue, mas de veia pobre,


Caídos beiços, volumoso abdômen,


Grisalha cabeleira esparramada,


Tremendo narigão, mas testa curta;


Em suma um glosador de sobremesas.






"Tancredo!—repetiu imaginando—


Um asno! só cantava para o povo!


Uma língua de fel, um insolente!


Orgulho desmedido.. . e quanto aos versos


Morava como um sapo n'água doce. . .


Não sabia fazer um trocadilho. . ."






O rei passou—com ele a companhia.


Só ficou ressupino e macilento


Da estrada em meio o trovador defunto.






IV






Ia caindo o sol. Bem reclinado


No vagaroso coche madornando,


Depois de bem jantar fazendo a sesta,


Roncava um nédio, um barrigudo frade:


Bochechas e nariz, em cima uns óculos,


Vermelho solidéu... enfim um bispo,


E um bispo, senhor Deus! da idade média,


Em que os bispos—como hoje e mais ainda—


Sob o peso da cruz bem rubicundos,


Dormindo bem, e a regalar bebendo,


Sabiam engordar na sinecura;


Papudos santarrões, depois


Missa Lançando ao povo a bênção—por dinheiro!






O cocheiro ia bêbado por certo;


Os cavalos tocou p'lo bom caminho


Mesmo em cima das pernas do cadáver.


Refugou a parelha, mas o sota


—Que ao sol da glória episcopal enchia


De orgulho e de insolência o couro inerte,


Cuspindo o poviléu, como um fidalgo—


Que em falta de miolo tinha vinho


Na cabeça devassa, deu de esporas:


Como passara sobre a vil carniça


Reléu de corvos negros—foi por cima. . .


Mas desgraça! maldito aquele morto!


Desgraça!... não porque pisasse o coche


Aqueles magros ossos, mas a roda


Na humana resistência deu estalo. . .


E acorda o fradalhão...






"O que se sucede?


—Pergunta bocejando: É algum bêbado?


Em que bicho pisaram?"






"Senhor bispo"


Diz o servo da Igreja, o bom cocheiro


Ao vigário de Cristo, ao santo Apóstolo


Isto é—dessa fidalga raça nova


Que não anda de pé como S. Pedro,


Nem estafa os corcéis de S. Francisco:


"Perdoe Vossa Excelência Eminentíssima;


É um pobre diabo de poeta,


Um homem sem miolo e sem barriga


Que lembrou‑se de vir morrer na estrada!"






"Abrenúncio! —rouqueja o Santo Bispo—


Leve o Diabo essa tribo de boêmios!


Não há tanto lugar onde se morra?


Maldita gente! inda persegue os Santos


Depois que o Diabo a leva!. . ."


E foi caminho.






Leve‑te Deus! Apóstolo da crença,


Da esperança e da santa caridade!


Tu, sim, és religioso e nos altares


Vem cada sacristão, e cada monge


Agitar a teus pés o seu turíbulo!


E o sangue do Senhor no cálix d'oiro


Da turba na oração te banha os lábios


Leve‑te Deus, Apóstolo da crença!


Sem padres como tu que fora o mundo?


É por ti que o altar apóia o trono!


E teu olhar que fertiliza os vales


Fecunda a vinha santa do Messias!


Leve‑te Deus ou leve‑te o Demônio!






V






Caiu a noite, do azulado manto,


Como gotas de orvalho, sacudindo


Estrelas cintilantes.—Veio a lua


Banhando de tristeza o céu noturno:


Derrama aos corações melancolia,


Derrama no ar cheiroso molemente


Cerúlea chama, dia incerto e pálido


Que ao lado da floresta ajunta as sombras


E lança pelas águas da campina


Alvacentos clarões que as flores bebem.


A galope, de volta do noivado,


Passa o Conde Solfier, e a noiva Elfrida.


Seguem fidalgos que o sarau reclama.






ELFRIDA






—Não vês, Solfier, ali da estrada em meio


Um defunto estendido?—






SOLFIER






—Ó minha Elfrida,


Voltemos desse lado: outro caminho


Se dirige ao castelo. É mau agouro


Por um morto passar em noites destas.


Mas Elfrida aproxima o seu cavalo.






ELFRIDA






—Tancredo vede! é o trovador Tancredo!


Coitado! assim morrer! um pobre moço!


Sem mãe e sem irmã! E não o enterram?


Neste mundo não teve um só amigo?—






"Ninguém, senhora—respondeu da sombra


Uma dorida voz—Eu vim, há pouco,


Ao saber que do povo no abandono


Jazia como um cão. Eu vim, e eu mesmo


Cavei junto do lago a cova impura."






ELFRIDA






—Tendes um coração. Tomai, mancebo,


Tomai essa pulseira Em oiro e jóias


Tem bastante p'ra erguer‑lhe um monumento,


E para longas missas lhe dizerem


Pelo repouso d'alma...






O moço riu-se.






O DESCONHECIDO






—Obrigado. Guardai as vossas jóias.


Tancredo o trovador morreu de fome;


Passaram‑lhe no corpo frio e morto,


Salpicaram de lodo a face dele,






Talvez cuspissem nesta fronte santa


Cheia outrora de eternas fantasias,


De idéias a valer um mundo inteiro!...


Por que lançar esmolas ao cadáver?


Leva‑as, fidalga—tuas jóias belas!






O orgulho do plebeu as vê sorrindo.


Missas... bem sabe Deus se neste mundo


Gemeu alma tão pura como a dele!


Foi um anjo, e murchou‑se como as flores,


Morreu sorrindo como as virgens morrem!


Alma doce que os homens enjeitaram,


Lírio que profanou a turba imunda,


Oh! não te mancharei nem a lembrança


Com o óbolo dos ricos! Pobre corpo,


És o templo deserto, onde habitava


O Deus que em ti sofreu por um momento!


Dorme, pobre Tancredo! eu tenho braços:


Na cova negra dormirás tranqüilo. . .


Tu repousas ao menos!. . . —






No entanto sofreando a custo a raiva,


Mordendo os lábios de soberba e fúria,


Solfier da bainha arranca a espada,


Avança ao moço e brada‑lhe:






"Insolente!


Cala‑te, doudo! Cala‑te, mendigo!


Não vês quem te falou? Curva o joelho,


Tira o gorro, vilão!"






O DESCONHECIDO






—Tu vês: não tremo.


Tu não vales o vento que salpica


Tua fronte de pó. Porque és fidalgo,


Não sabes que um punhal vale uma espada


Dentro do coração?—






Mas logo Elfrida:


"Acalma‑te, Solfier! O triste moço


Desespera, blasfema e não me insulta.


Perdoa‑me também, mancebo triste;


Não pensei ofender tamanho orgulho.


Tua mágoa respeito. Só te imploro


Que sobre a fronte ao trovador desfolhes


Essas flores, as flores do noivado


De uma triste mulher . . E quanto às jóias,


Lança‑as no lago. . .Mas quem és? teu nome?"






O DESCONHECIDO






—Quem sou? um doudo, uma alma de insensato,


Que Deus maldisse e que Satã devora;


Um corpo moribundo em que se nutre


Uma centelha de pungente fogo,


Um raio divinal que dói e mata,


Que doira as nuvens e amortalha a terra!. .


Uma alma como o pó em que se pisa;


Um bastardo de Deus, um vagabundo


A que o gênio gravou na fronte—anátema!


Desses que a turba com o dedo aponta. . .


Mas não; não hei de sê‑lo! eu juro n'alma,


Pela caveira, pelas negras cinzas


De minha mãe o juro... agora há pouco


Junto de um morto reneguei do gênio,


Quebrei a lira à pedra de um sepulcro. . .


Eu era um trovador, sou um mendigo .


Ergueu do chão a dádiva d'Elfrida;


Roçou as flores aos trementes lábios;


Beijou‑as. Sobre o peito de Tancredo


Pousou‑as lentamente...






—Em nome dele,


Agradeço estas flores do teu seio,


Anjo que sobre um túmulo desfolhas


Tuas últimas flores de donzela!—






Depois vibrou na lira estranhas mágoas,


Carpiu à longa noite escuras nênias,


Cantou: banhou de lágrimas o morto.






De repente parou—vibrou a lira


Co'as mãos iradas, trêmulas... e as cordas


Uma per uma rebentou cantando...


Tinha fogo no crânio, e sufocava.


Passou a fria mão nas fontes úmidas,


Abriu a medo os lábios convulsivos,


Sorriu de desespero—e sempre rindo


Quebrou as jóias as lançou no abismo.






VI






No outro dia, na borda do caminho


Deitado ao pé de um fosso aberto apenas,


Viu‑se um mancebo loiro que morria. . .


Semblante feminil, e formas débeis,


Mas nos palores da espaçosa fronte


Uma sombria dor cavara sulcos.


Corria sobre os lábios alvacentos


Uma leve umidez, um ló d'escuma,


E seus dentes a raiva constringira...


Tinha os punhos cerrados. . . Sobre o peito


Acharam letras de uma língua estranha. . .


E um vidro sem licor. . . fora veneno!. . .






Ninguém o conheceu; mas conta o povo


Que, ao lançá‑lo no túmulo, o coveiro


Quis roubar‑lhe o gibão—despiu o moço. . .


E viu. . . talvez é falso. . . níveos seios. . .


Um corpo de mulher de formas puras. . .






Na tumba dormem os mistérios de ambos;


Da morte o negro véu não há erguê‑lo!


Romance obscuro de paixões ignotas


Poema d'esperança e desventura,


Quando a aurora mais bela os encantava,


Talvez rompeu‑se no sepulcro deles!


Não pode o bardo revelar segredos


Que levaram ao céu as ternas sombras;


Desfolha apenas nessas frontes puras


Da extrema inspiração as flores murchas. . .





IDÉIAS ÍNTIMAS






(Fragmento)






La chaise ou je m'assieds, la natte ou je me couche, La table ou je t'écris,…………………………….


Mes gros souliers ferrés, mon bâton,, mon chapeau. Mes livres pêle‑mêle entassés sur leur planche…………………………………………………………………………………………………


De cet espace étroit sont tout l'ameublement.






LAMARTINE, Jocelyn










I






Ossian o bardo é triste como a sombra


Que seus cantos povoa. O Lamartine


É monótono e belo como a noite,


Como a lua no mar e o som das ondas


Mas pranteia uma eterna monodia,


Tem na lira do gênio uma só corda,


Fibra de amor e Deus que um sopro agita:


Se desmaia de amor a Deus se volta,


Se pranteia por Deus de amor suspira.






Basta de Shakespeare. Vem tu agora,


Fantástico alemão, poeta ardente


Que ilumina o clarão das gotas pálidas


Do nobre Johannisberg! Nos teus romances


Meu coração deleita‑se. . . Contudo


Parece‑me que vou perdendo o gosto,


Vou ficando blasé, passeio os dias


Pelo meu corredor, sem companheiro,


Sem ler, nem poetar. Vivo fumando.


Minha casa não tem menores névoas


Que as deste céu d'inverno. . . Solitário


Passo as noites aqui e os dias longos;


Dei‑me agora ao charuto em corpo e alma;


Debalde ali de um canto um beijo implora,


Como a beleza que o Sultão despreza,


Meu cachimbo alemão abandonado!


Não passeio a cavalo e não namoro;


Odeio o lansquenê. . . Palavra d'honra:


Se assim me continuam por dois meses


Os diabos azuis nos frouxos membros,


Dou na Praia Vermelha ou no Parnaso.






II






Enchi o meu salão de mil figuras.


Aqui voa um cavalo no galope,


Um roxo dominó as costas volta


A um cavaleiro de alemães bigodes,


Um preto beberrão sobre uma pipa,


Aos grossos beiços a garrafa aperta. . .


Ao longo das paredes se derramam


Extintas inscrições de versos mortos,


E mortos ao nascer. . . Ali na alcova


Em águas negras se levanta a ilha


Romântica, sombria à flor das ondas


De um rio que se perde na floresta. . .


Um sonho de mancebo e de poeta,


El‑Dorado de amor que a mente cria


Como um Éden de noites deleitosas....


Era ali que eu podia no silêncio


Junto de um anjo. . . Além o romantismo!


Borra adiante folgaz caricatura


Com tinta de escrever e pó vermelho


A gorda face, o volumoso abdômen,


E a grossa penca do nariz purpúreo


Do alegre vendilhão entre botelhas


Metido num tonel... Na minha cômoda


Meio encerado o copo inda verbera


As águas d'oiro do Cognac fogoso.


Negreja ao pé narcótica botelha


Que da essência de flores de laranja


Guarda o licor que nectariza os nervos.


Ali mistura‑se o charuto Havano


Ao mesquinho cigarro e ao meu cachimbo.


A mesa escura cambaleia ao peso


Do titânio Digesto, e ao lado dele


Childe Harold entreaberto ou Lamartine.


Mostra que o romanismo se descuida


E que a poesia sobrenada sempre


Ao pesadelo clássico do estudo.






III






Reina a desordem pela sala antiga,


Desce a teia de aranha as bambinelas


À estante pulvurenta. A roupa, os livros


Sobre as cadeiras poucas se confundem.


Marca a folha do Faust um colarinho


E Alfredo de Musset encobre às vezes


De Guerreiro ou Valasco um texto obscuro.


Como outrora do mundo os elementos


Pela treva jogando cambalhotas,


Meu quarto, mundo em caos, espera um Fiat!






IV






Na minha sala três retratos pendem.


Ali Victor Hugo. Na larga fronte


Erguidos luzem os cabelos loiros


Como c'roa soberba. Homem sublime,


O poeta de Deus e amores puros


Que sonhou Triboulet, Marion Delorme


E Esmeralda a Cigana e diz a crônica


Que foi aos tribunais parar um dia


Por amar as mulheres dos amigos


E adúlteros fazer romances vivos.






V






Aquele é Lamennais—o bardo santo,


Cabeça de profeta, ungido crente,


Alma de fogo na mundana argila


Que as harpas de Sion vibrou na sombra,


Pela noite do século chamando


A Deus e à liberdade as loucas turbas.


Por ele a George Sand morreu de amores,


E dizem que. . . Defronte, aquele moço


Pálido, pensativo, a fronte erguida,


Olhar de Bonaparte em face Austríaca,


Foi do homem secular as esperanças.


No berço imperial um céu de Agosto


Nos cantos de triunfo despertou‑o. . .


As águias de Wagram e de Marengo


Abriam flamejando as longas asas


Impregnadas do fumo dos combates,


Na púrpura dos Césares, guardando‑o.


E o gênio do futuro parecia


Predestiná‑lo à glória. A história dele?


Resta um crânio nas urnas do estrangeiro. . .


Um loureiro sem flores nem sementes. ..


E um passado de lágrimas. . . A terra


Tremeu ao sepultar‑se o Rei de Roma.


Pode o mundo chorar sua agonia


E os louros de seu pai na fronte dele


Infecundos depor... Estrela morta,


Só pode o menestrel sagrar‑te prantos!






VI






Junto a meu leito, com as mãos unidas,


Olhos fitos no céu, cabelos soltos,


Pálida sombra de mulher formosa


Entre nuvens azuis pranteia orando.


É um retrato talvez. Naquele seio


Porventura sonhei doiradas noites:


Talvez sonhando desatei sorrindo


Alguma vez nos ombros perfumados


Esses cabelos negros, e em delíquio


Nos lábios dela suspirei tremendo.


Foi‑se minha visão. E resta agora


Aquela vaga sombra na parede


—Fantasma de carvão e pó cerúleo,


Tão vaga, tão extinta e fumarenta


Como de um sonho o recordar incerto.






VII






Em frente do meu leito, em negro quadro


A minha amante dorme. É uma estampa


De bela adormecida. A rósea face


Parece em visos de um amor lascivo


De fogos vagabundos acender‑se. . .


E com a nívea mão recata o seio. . .


Oh! quantas vezes, ideal mimoso,


Não encheste minh'alma de ventura,


Quando louco, sedento e arquejante,


Meus tristes lábios imprimi ardentes


No poento vidro que te guarda o sono!






VIII






O pobre leito meu desfeito ainda


A febre aponta da noturna insônia.


Aqui lânguido a noite debati‑me


Em vãos delírios anelando um beijo...


E a donzela ideal nos róseos lábios,


No doce berço do moreno seio


Minha vida embalou estremecendo. . .


Foram sonhos contudo. A minha vida


Se esgota em ilusões. E quando a fada


Que diviniza meu pensar ardente


Um instante em seus braços me descansa


E roça a medo em meus ardentes lábios


Um beijo que de amor me turva os olhos.


Me ateia o sangue, me enlanguesce a fronte,


Um espírito negro me desperta,


O encanto do meu sonho se evapora


E das nuvens de nácar da ventura


Rolo tremendo à solidão da vida!






IX






Oh! ter vinte anos sem gozar de leve


A ventura de uma alma de donzela!


E sem na vida ter sentido nunca


Na suave atração de um róseo corpo


Meus olhos turvas se fechar de gozo!


Oh! nos meus sonhos, pelas noites minhas


Passam tantas visões sobre meu peito!


Palor de febre meu semblante cobre,


Bate meu coração com tanto fogo!


Um doce nome os lábios meus suspiram,


Um nome de mulher . . e vejo lânguida


No véu suave de amorosas sombras


Seminua, abatida, a mão no seio,


Perfumada visão romper a nuvem,


Sentar‑se junto a mim, nas minhas pálpebras


O alento fresco e leve como a vida


Passar delicioso. . . Que delírios!


Acordo palpitante . . inda a procuro;


Embalde a chamo, embalde as minhas lágrimas


Banham meus olhos, e suspiro e gemo. . .


Imploro uma ilusão. . . tudo é silêncio!


Só o leito deserto, a sala muda!


Amorosa visão, mulher dos sonhos,


Eu sou tão infeliz, eu sofro tanto!


Nunca virás iluminar meu peito


Com um raio de luz desses teus olhos?






X






Meu pobre leito! eu amo‑te contudo!


Aqui levei sonhando noite belas


As longas horas olvidei libando


Ardentes gotas de licor doirado,


Esqueci‑as no fumo, na leitura


Das páginas lascivas do romance. .






Meu leito juvenil, da minha vida


És a página d'oiro. Em teu asilo


Eu sonho‑me poeta, e sou ditoso,


E a mente errante devaneia em mundos


Que esmalta a fantasia! Oh! quantas vezes


Do levante no sol entre odaliscas


Momentos não passei que valem vidas!


Quanta música ouvi que me encantava!


Quantas virgens amei! que Margaridas,


Que Elviras saudosas e Clarissas


Mais trêmulo que Faust eu não beijava,


Mais feliz que Don Juan e Lovelace


Não apertei ao peito desmaiando!






Ó meus sonhos de amor e mocidade,


Por que ser tão formosos, se devíeis


Me abandonar tão cedo... e eu acordava


Arquejando a beijar meu travesseiro?






XI






Junto do leito meus poetas dormem


—O Dante, a Bíblia, Shakespeare e Byron ‑


Na mesa confundidos. Junto deles


Meu velho candeeiro se espreguiça


E parece pedir a formatura.


Ó meu amigo, ó velador noturno,


Tu não me abandonaste nas vigílias,


Quer eu perdesse a noite sobre os livros,


Quer, sentado no leito, pensativo


Relesse as minhas cartas de namoro!


Quero‑te muito bem, ó meu comparsa


Nas doudas cenas de meu drama obscuro!


E num dia de spleen, vindo a pachorra,


Hei de evocar‑te num poema heróico


Na rima de Camões e de Ariosto


Como padrão às lâmpadas futuras!






XII






Aqui sobre esta mesa junto ao leito


Em caixa negra dous retratos guardo.


Não os profanem indiscretas vistas.


Eu beijo‑os cada noite: neste exílio


Venero‑os juntos e os prefiro unidos


—Meu pai e minha mãe.—Se acaso um dia


Na minha solidão me acharem morto,


Não os abra ninguém. Sobre meu peito


Lancem‑os em meu túmulo. Mais doce


Será certo o dormir da noite negra


Tendo no peito essas imagens puras.






XIII






Havia uma outra imagem que eu sonhava


No meu peito na vida e no sepulcro.


Mas ela não o quis rompeu a tela


Onde eu pintara meus doirados sonhos.


Se posso no viver sonhar com ela,


Essa trança beijar de seus cabelos


E essas violetas inodoras, murchas,


Nos lábios frios comprimir chorando,


Não poderei na sepultura, ao menos,


Sua imagem divina ter no peito.






XIV






Parece que chorei . Sinto na face


Uma perdida lágrima rolando. . .


Satã leve a tristeza! Olá, meu pajem,


Derrama no meu copo as gotas últimas


Dessa garrafa negra...


Eia! bebamos!


És o sangue do gênio, o puro néctar


Que as almas de poeta diviniza,


O condão que abre o mundo das magias!


Vem, fogoso Cognac! É só contigo


Que sinto‑me viver. Inda palpito,


Quando os eflúvios dessas gotas áureas


Filtram no sangue meu correndo a vida,


Vibram‑me os nervos e as artérias queimam


Os meus olhos ardentes se escurecem


E no cérebro passam delirosos


Assomos de poesia. . . Dentre a sombra


Vejo num leito d'oiro a imagem dela


Palpitante, que dorme e que suspira,


Que seus braços me estende. . .


Eu me esquecia:


Faz‑se noite, traz fogo e dous charutos


E na mesa do estudo acende a lâmpada...





BOÊMIOS






(Ato de uma comédia não escrita)






Totus mundus agit histrionem (proverbio do tempo de Shakespeare)










Prólogo






Levanta‑se o pano até o meio. Passa por debaixo e vem até a rampa um velho de cabeça calva, camisola branca, carapuça frígia coroada de louros. Tem um ramo de oliveira na mão. Faz as cortesias do estilo e fala:






Dom Quixote! Sublime criatura!


Tu sim foste leal e cavaleiro,


O último herói, o paladim extremo


De Castela e do mundo. Se teu cérebro


Toldou‑se na loucura, a tua insânia


Vale mais do que o siso destes séculos


Em que a Infâmia, Dagon cheio de lodo,


Recebe as orações, mirras e flores,


E a louca multidão renega o Cristo!


Tua loucura revelava brio.


No triste livro do imortal Cervantes


Não posso crer um insolente escárnio


Do Cavaleiro andante aos nobres sonhos,


Ao fidalgo da Mancha—cuja nódoa


Foi só ter crido em Deus e amado os homens,


E votado seu braço aos oprimidos.


Aquelas folhas não me causam riso,


Mas desgosto profundo e tédio à vida.


Soldado e trovador, era impossível


Que Cervantes manchasse um valeroso


Em vil caricatura, e desse à turba,


Como presa de escárnio e de vergonha,


Esse homem que à virtude, amor e cantos


Abria o coração!






Estas idéias


Servem para desculpa do poeta.


Apesar de bom moço, o autor da peca


Tem uns laivos talvez de Dom Quixote.


E nestes tempos de verdade e prosa —


Sem Gigantes, sem Mágicos medonhos


Que velavam nas torres encantadas


As donzelas dormidas por cem anos—


Do seu imaginar esgrime as sombras


E dá botes de lança nos moinhos.






Mas não escreve sátiras: apenas


Na idade das visões—dá corpo aos sonhos.


Faz trovas, e não talha carapuças.


Nem rebuça no véu do mundo antigo,


P'ra realce maior, presentes vícios.


Não segue a Juvenal, e não embebe


Em venenoso fel a pena escura


Para nódoas pintar no manto alheio.






O tempo em que se passa agora a cena


É o século dos Bórgias. O Ariosto


Depôs na fronte a Rafael gelado


Sua c'roa divina, e o segue ao túmulo.


Ticiano inda vive. O rei da turba


É um gênio maldito—o Aretino.


Que vende a alma e prostitui as crenças.


Aretino! essa incrível criatura,


Poeta sem pudor' onda de lodo


Em que do gênio profanou‑se a pérola


Vaso d'oiro que um óxido sem cura


Azinhavrou de morte homem terrível


Que tudo profanou co'as mãos imundas,


Que latiu como um cão mordendo um século,


E, como diz um epitáfio antigo,


Só em Deus não mordeu, porque o não vira.


Como ele, foi devasso todo o século.


Os contos de Boccaccio e de Brantôme


São mais puros que a história desses tempos.


Tasso enlouquece. O Rei que se diverte


—O herói de Marignan e de Pavia


Que num vidro escrevera do palácio


Femme sovem varie, mas leviano


Com mais amantes que um Sultão vivia,


Mandava ao Aretino amáveis letras,


Um colar d'oiro com sangrentas línguas,


E dava‑lhe pensões. O Vaticano


Viu o Papa beijando aquela fronte.


Carlos V o nomeia cavaleiro,


Abraça‑o e—inda mais—lhe manda escudos.


O Duque João Médicis o adora,


Dorme com ele a par no mesmo leito.


É um tempo de agonias. A arte pálida,


Suarenta, moribunda, desespera


E aguarda o funeral de Miguel Angelo


Para com ele abandonar o mundo


E angélica voltar ao céu dos Anjos.






Agora basta. Revelei minh'alma.


A cena descrevi onde correra


Inteira uma comédia em vez de um ato,


Se o poeta mais forte se atrevesse


A erguer nos versos a medonha sombra


Da loucura fatal do mundo inteiro.






Boas‑noites, platéia e camarotes;


O ponto já me diz que deixe o campo.


O primeiro galã todo empoado,


Cheio de vermelhão, já dentro fala:


Estão cheios de luz os bastidores.






Uma última palavra: o autor da peca,


Puxando‑me da túnica romana,


Diz‑me da cena que eu avise às Damas


Que desta feita os sais não são precisos;


Não há de sarrabulho haver no palco.


É uma peça clássica. O perigo


Que pode ter lugar é vir o sono;


Mas dormir é tão bom, que certamente


Ninguém por esse dom fará barulho.


O assunto da Comédia e do Poema


Era digno sem dúvida, Senhores,


De uma pena melhor; mas desta feita


Não fala Shakespeare nem Gil Vicente.


O poeta é novato, mas promete.


Posto que seja um homem barrigudo


E tenha por Talia o seu cachimbo,


Merece aplausos e merece glória.






ATO ÚNICO






A cena passa‑se na Itália no século XVI. Uma rua escura e deserta. Alta noite. Numa esquina uma imagem de Madona em seu nicho alumiado por uma lâmpada.






Puff dorme no chão abraçando uma garrafa. Níni entra tocando guitarra. Dão 3 horas.






NÍNI






Olá! que fazes, Puff? dormes na rua?






PUFF, acordando.






Não durmo... Penso.






NÍNI






Estás enamorado?


E deitado na pedra acaso esperas


O abrir de uma janela? Estás cioso


E co'a botelha em vez de durindana


Aguardas o rival?






PUFF






Ceei à farta


Na taverna do Sapo e das Três‑Cobras.


Faço o quilo; ao repouso me abandono.


Como o Papa Alexandre ou como um Turco,


Me entrego ao farniente e bem a gosto


Descanso na calcada imaginando.






NÍNI






Embalde quis dormir. Na minha mente


Fermenta um mundo novo que desperta.


Escuta, Puff: eu sinto no meu crânio


Como em seio de mãe um feto vivo.


Na minha insônia vela o pensamento.


Os poetas passados e futuros


Vou todos ofuscar... Aqui no cérebro


Tenho um grande poema.


Hei de escrevê‑lo,


É certa a glória minha!






PUFF






A idéia é boa:


Toma dez bebedeiras—são dez cantos.


Quanto a mim tenho fé que a poesia


Dorme dentro do vinho. Os bons poetas


Para ser imortais beberam muito.






NÍNI






Não rias. Minha idéia é nova e bela.


A Musa me votou a eterna glória.


Não me engano, meu Puff, enquanto sonho:


Se aos poetas divinos Deus concede


Um céu mais glorioso, ali com Tasso,


Com Dante e Ariosto eu hei de ver‑me.


Se eu fizer um poema, certamente


No Panteon da fama cem estátuas


Cantarão aos vindouros o meu gênio!






PUFF






Em estátua, meu Níni! Estás zombando!


É impossível que saias parecido.


Que mármore daria a cor vermelha


Deste imenso nariz' destas melenas?






NÍNI






Estás bêbado, Puff. Tresandas vinho.






PUFF






O vinho! és uma besta; só um parvo


Pode a beleza desmentir do vinho.


Tu nunca leste o Cântico dos Cânticos


Onde o rei Salomão, como elogio,


Dizia à noiva—Pulchriora sunt


Ubera tua vino!






NÍNI






É sempre um bobo






PUFF






E tu és sempre esse nariz vermelho


Que ainda aqui na treva desta rua


Flameja ao pé de mim. Quando te vejo,


Penso que estou na Igreja ouvindo


Missa Dita por Cardeal.






NÍNI






És um devasso.






PUFF






Respondo‑te somente o que dizia


Sir John Falstaff, da noite o cavaleiro:


"Se Adão pecou no estado de inocência,


Que muito é que nos dias da impureza


Peque o mísero Puff?" Tu bem o sabes:


Toda a fragilidade vem da carne,


E na carne se eu tanto excedo os outros,


Vícios não devem meus causar espanto.


Minha alma dorme em treva completíssima


Pela minha descrença... E tu, maldito,


Por que sempre não vens esclarecer‑me


Com esse teu farol aceso sempre,


Cavaleiro da lâmpada vermelha


As trevas de minh'alma?






NÍNI






Que leproso!






PUFF






Sou um homem de peso. Entendo a vida;


Tenho muito miolo, e a prova disto


É que não sou poeta nem filósofo,


E gosto de beber, como Panúrgio.


Se tu fosses tonel, como pareces,


Eu te bebera agora de um só trago.






NÍNI






Quero‑te bem contudo. Amigos velhos


Deixemo‑nos de histórias. Meu poema…






PUFF






Se falas em poema, eu logo durmo.






NÍNI






Uma vez era um rei…






PUFF






Não vês? eu ronco.






NÍNI






Quero a ti dedicar minha obra‑prima;


Irás junto comigo à eternidade.


Teu retrato porei no frontispício.


Meu poema será uma coroa


Que as nossas frontes engrinalde juntas.






PUFF






Pensei‑te menos doudo. O teu poema


Seria uma sublime carapuça.


Mas, já que sonhas tanto, olha, meu Níni,


Tu precisas de um saco.






NÍNI






Impertinente!






PUFF






Dá‑me aqui tua mão. Sabes, amigo?


Passei ontem o dia de namoro;


Minhas paixões voltei à nova esposa


Do velho Conde que ali mora em frente.


Estou adiantado nos amores.


A cozinheira, outrora minha amante,


Meus passos guia, meus suspiros leva.


Mas preciso, com pressa, de um soneto.


Prometes‑me fazê‑lo?






NÍNI






Se me ouvires


Recitar meu poema…






PUFF






Eu me resigno.


Declama teu sermão, como um vigário.


Mas o sono ao rebanho se permite?






(Entra um criado correndo.)






Roa‑me o diabo as tripas, se não vejo


Ali correr com pernas de cabrita


O criado do cônego Tansoni.






NÍNI






Onde vais, Gambioletto?






GAMBIOLETTO






Vou à pressa


Ao doutor Fossuário.






PUFF






Acaso agora


O carrasco fugiu?






NÍNI






Quem agoniza?






GAMBIOLETTO






O Reverendo e Santo Sr. Cônego,


Deitando‑se a dormir depois da ceia


No colo de Madona la Zaffeta,


Umas dores sentiu pela barriga,


Caiu estrebuchando sobre a sala...


Morre de apoplexia.






NÍNI






O diabo o leve!






GAMBIOLETTO






E o médico, Srs.!






(Sai correndo.)






PUFF






Venturoso!






Sempre é Cônego... Níni, dulce et decus


Pro patria mori É doce e glorioso


Morrer de apoplexia! Quem me dera


Morrer depois da ceia, de repente!


Não vem o confessor contar novelas,


Não soam cantos fúnebres em torno,


Nem se forca o medroso moribundo


A rezar, quando só dormir quisera!


Venturosos os Cônegos e os Bispos,


E os papudos Abades dos conventos!


Eles podem morrer de apoplexia!


E se morre pensando—coisa nova!






Quem nunca no viver cansou‑se nisso;


Se eles morrerem pensando, ante seus olhos,


No momento final sem ter pavores,


Inda corre a visão da bela mesa!


A não morrer‑se como o velho Píndaro,


Cantando, sobre o seio amorenado


De sua amante Grega, oh! quem me dera


Cair morto no chão, beijando ainda


A botelha divina!






NÍNI






Que maluco!


A estas horas da noite, assim no escuro


Não temes de lembrar‑te de defuntos?


Beijarias até uma caveira,


Se espumante o Madeira ali corresse!






PUFF






Os cálices doirados são mais belos;


Inda porém mais doce é nos beicinhos


Da bela moca que sorrindo bebe


Libar mais terno o saibo dos licores...


Eu prefiro beijar a tua amante.






NÍNI






Tens medo de defuntos?






PUFF






Um bocado


Sinto que não nasci para coveiro.


Contudo, no domingo, à meia‑noite. . .


Pela forca passei, vi nas alturas,


Do luar sem vapor à luz formosa,


Um vilão pendurado. Era tão feio!


A língua um palmo fora, sobre o peito,


Os olhos espantados, boca lívida,


Sobre a cabeça dele estava um corvo...






O morto estava nu, pois o carrasco


Despindo os mortos dá vestido aos filhos,


E deixa à noite o padecente à fresca.


Eu senti pelo corpo uns arrepios. . .


Mas depois veio o animo... trepei‑me


Pela escada da forca, fui acima,


E pintei uns bigodes no enforcado.






NÍNI






Bravo como um Vampiro!






PUFF


Oh! antes d'ontem


Passei pelos telhados sem ter medo,


Para evitar um pátio onde velava


Um cão—que enorme cão! —subindo ao quarto


Onde dorme Rosina Belvidera.






NÍNI






Ousaste ao Cardeal depor na fronte


Tão pesada coroa?






PUFF






A mitra cobre.


Dizem que a santidade lava tudo;


Depois. . . o Cardeal estava bêbado…


A propósito, sabes dos amores


Do capitão Tybald? O tal maroto


Não sei de que milagres tem segredo


Que deu volta à cabeça da rainha.






NÍNI






Por isso o pobre Rei anda tão triste!






PUFF






Spadaro, o fidalgote barba‑ruiva,


Contou‑me que espiando p'la janela


Do quarto da rainha os viu Caluda!






NÍNI






E o Rei que faz? Não tem lá na cozinha


Algum pau de vassoura ou um chicote?






PUFF






El‑Rei Nosso Senhor então ceava.






NÍNI






Santo Rei!






PUFF






E demais é bem sabido


Que El‑Rei só reina à mesa e nas caçadas.






NÍNI






Nunca perde um veado quando atira.






PUFF






Ele caça veados! Má fortuna!


Não o cacem também pela ramagem!






NÍNI






Com língua tão comprida e viperina


Irás parar na forca.






PUFF






Níni, escuta.


Assisti esta noite a um pagode


Na taverna do Sapo e das Três‑Cobras.


Era já lusco‑fusco e eu entrando


Dou com Frei São José e Frei Gregório,


O Prior do convento dos Bernardos


E mais uns dous ou três que só conheço


De ver pelas esquinas se encostando,


Ou dormidos na rua a sono solto. . .






Que soberbo painel! Faze uma idéia!


Um banquete! fartura! que presuntos!


Que tostados leitões que recendiam!


Numa enorme caldeira enormes peixes,


Recheados capões fervendo ainda,


Peus, olhas‑podridas, costeletas


Esgotara o talento a cozinheira!


Abertos garrafões; garrafas cheias;


Vinho em copos imensos transbordando;


Na toalha, já suja, debruçados


Aqueles religiosos cachaçudos


De boca aberta e de embotados olhos.


Gastrônomos! ali é que se via


Que é ciência comer, e como um frade


Goza pelo nariz e pelos olhos,


Pelas mãos, pela boca, e faz focinho


E bate a língua ao paladar gostoso


Ao celeste sabor de um bom pedaço!






Depois! era bonito! Frei Gregório


Co'a boca de gordura reluzente,


Farto de vinho, esquece o reumatismo,


Esquece a erisipela já sem cura,


Canta rondós e dança a tarantela.


Arrasta‑se caindo e se babando


Aos pés da taverneira De joelhos


Faz‑lhe a corte cantando o Miserere


Principia sermões, engrola textos,


E a gorda mão estende ao nédio seio


Da bela mocetona. . . a mão lhe beija,


A mão que o cetro cinge de vassoura. . .


Chora, soluça e cai, estende os braços,


Ainda a chama, e cantochão entoa






Era de rir! os velhos amorosos,


Uns de joelhos no chão, outros cantando


Estendidos na mesa entre os despojos,


Outros beijando a moça, outros dormindo.


Ela no meio deslambida e fresca


Excita‑os mutuamente e os rivaliza,


Passa‑lhes pelo queixo a mão gorducha...






Corre o Prior a soco um Barbadinho,


Atracam‑se, blasfemam, esconjuram,


Um agarra na barba do contrário,


Outro tenta apertar o papo alheio...


Abraçam‑se na luta os dous volumes


E rolam como pipas. No oceano


Assim duas baleias ciumentas


Atracam‑se na luta... Que risadas!


Que risadas, meu Deus! arrebentando


Soltou o pobre Puff vendo a comédia!






NÍNI






Ouve agora o poema…






PUFF






Espera um pouco,


A taverna do canto não se fecha,


Está aberta. Compra uma garrafa …


Bom vinho tu bem sabes! Tenho a goela


Fidalga como um rei. Não tenho dúvida


Mentiu a minha mãe quando contou‑me


Que nasci de um prosaico matrimônio


Eu filho de escrivão!. . . Para criar‑me


Era—senão um Rei—preciso um Bispo!






NÍNI






(Vai à taverna e volta.)






Eis aqui uma bela empada fria,


Uma garrafa e copo.






PUFF (quebrando o copo).






O Demo o leve!


Eu sou como Diógenes. Só quero


Aquilo sem o que viver não posso.


Deitado nesta laje, preguiçoso,


Olhando a lua, beijo esta garrafa,


E o mundo para mim é como um sonho.


Creio até que teu ventre desmedido


Como escura caverna vai abrir‑se,


Mostrando‑me no seio iluminado


Panoramas de harém, Sultanas lindas


E longas prateleiras de bom vinho!






NÍNI






Dou começo ao poema. Escuta um pouco:






I






Havia um rei numa ilha solitária,


Um rei valente, cavaleiro e belo.


O rei tinha um irmão.—Era um mancebo






Pálido, pensativo. A sua vida


Era nas serras divagar cismando,


Sentar‑se junto ao mar, dormir no bosque


Ou vibrar no alaúde os seus gemidos.






II






Vagabundo um vez junto das ondas


O Príncipe encontrou na areia fria


Uma branca donzela desmaiada,


Que um naufrágio na praia arremessara.


Revelavam‑lhe as roupas gotejantes


O belo talhe níveo, o melindroso


Das bem moldadas formas. —O mancebo


Nos braços a tomou, e foi com ela


Esconder‑se no bosque.






Quando a bela


Suspirando acordou, o belo Príncipe


Aos pés dela velava de joelhos.






Amaram‑se. É a vida. Eles viveram


Desse desmaio que dá corpo aos sonhos,


Que realiza visões e aroma a vida


Na sua primavera. A lua pálida,


As sombras da floresta, e dentre a sombra


As aves amorosas que suspiram


Viram aquelas frontes namoradas.


Ouviram sufocando‑se num beijo


Suspiros que o deleite evaporava.






III






O rei tinha um truão. O caso é visto,


É muito natural.— Se reis sombrios


Gostam de bobos na doirada corte,


Não admira de certo que um risonho


Em vez de capelão tivesse um bobo.






Loriolo—o truão do Rei—acaso


Um dia atravessando p'la floresta,


Foi dar numa cabana de folhagens.


Ninguém estava ali, porém num leito


De brandas folhas e cheirosas flores


Ele viu estendidas roupas alvas


—E roupas de mulher!—e junto um gorro,


Que pelas jóias e flutuantes plumas


E pela firma no veludo negro


Denunciava o Príncipe.





Loriolo,


Apesar de na corte ser um Bobo,


Não era um zote. Foi‑se remoendo,


Jurou dar com a história dos namoros.


E para andar melhor em tal caminho,


Ele que adivinhava que as Américas


Sem proteção de rei ninguém descobre,


Madrugou muito cedo—inda era escuro—


E convidou El‑Rei para o passeio.






IV






Ora, por uma triste desventura,


O rei entrando na Cabana Verde


Achou só a mulher.—Adormecida


No desalinho descuidoso e belo


Com que elas dormem, soltos os cabelos,


A face sobre a mão, e os seios lindos


Batendo à solta na macia tela


Da roupa de dormir que os modelava . . .


Não digo mais....






Loriolo pôs-se à espreita.


O Rei de leve despertou a bela,


Acordou‑a num beijo...






V






A linda moça,


Se havia ali raivosa apunhalar‑se,


Fazer espalhafato e gritaria,


Por um capricho, voluptuoso assomo,


Entregou‑se ao amor do Rei...






VI














"Maldito!"


Bradou‑lhe à porta um vulto macilento.


"Maldito! meu irmão, aquela moca


É minha, minha só, é minha amante


E minha esposa fora.. "






O Rei sorrindo


Lhe estende a régia mão e diz alegre:


"A culpa é tua. Eu disto não sabia;


Se do teu casamento me falasses,


Eu respeitava tua...."






"Basta, infame!


Não acrescentes zombaria ao crime.


Hei de punir‑te. É solitário o bosque;


Aqui não és um rei, porém um homem,


Um vil em cujo sangue hei de lavar‑me.


Oh! sangue! quero sangue! eu tenho sede!"






VII






Despiu tremendo a reluzente espada.


O mesmo fez o Rei. —Lutaram ambos.


Feminae sacra fames, quantum pectora


Mortalia cogis! E embalde a moça,


Ajoelhando seminua e pálida,


Vinha chorando, mais gentil no pranto,


Entre as espadas se lançar gemendo.


Embalde! Longo tempo encarniçado


A peleja durou Enfim caíram


Rolaram ambos trespassados, frios,


E, na treva de morte que os cegava,


Inda alongando os braços convulsivos


Que avermelhava o fratricida sangue,


Procurando no sangue o inimigo!






VIII


O Bobo fez as covas. Na montanha


Enterrou os irmãos.—E quanto à moça,


Pelo braço a tomou chorosa e fria,


Foi ao paço, e na gótica varanda,


De coroa real e longo manto,


Falou à plebe, prometeu franquezas,


Impostos levantar e dar torneios.


—Falou aos guardas: prometeu‑lhes vinho,


—Falou à fidalguia, mas no ouvido,


E prometeu‑lhe consentir nos vícios


E depressa fazer uma lei nova


Pela qual, se um fidalgo assassinasse


Algum torpe vilão, ficasse impune


E nem pagasse mais a vil quantia


Que era pena do crime—e alto disse


Que havia conquistar países novos.






IX






A história infelizmente é muito vista,


Não sou original! É uma desgraça!


Mas prefiro o caráter verdadeiro


De trovador cronista.—


Loriolo






Trocou de guizos o boné sonoro


—Muito leve chapéu! —pela coroa


Só teve uma desgraça o Rei novato:


Foi que um dia fugiu‑lhe do palácio


A tal moça volante nos amores.






X






Muitos anos passaram. Loriolo


Era um sublime rei. De rei a bobo


Já tantos têm caído! Não admira


Que um Bobo sendo Rei primasse tanto.


Governava tão bem como governam


Os reis de sangue azul e raça antiga,


Demais gastava pouco e, se não fosse


Seu amor pelas alvas formosuras,


De certo que na lista dos monarcas


Ele ficava sendo o Rei Sovina.


Enfim era um Monarca de mão‑cheia.


Tinha só um defeito—vendo sangue


Tinha frio no ventre; e desmaiava


Ao luzir de uma espada era nervoso!


Ninguém falava nisso.—Até a giba,


A figura de anão, a pele escura,


Aquela boca negra escancarada


(E que nem dentes amarelos tinha


P'ra ser de Adamastor), as gâmbias finas,


Eram tipo dos quadros dos pintores.


Se pintavam Adônis ou Cupido,


Copiavam o Rei em corpo inteiro,


E o oiro das moedas, que trazia.


A ventosa bochecha os beiços grossos,


O porcino perfil e a cabeleira,


Era beijado com fervor e culto.






XI






Loriolo envelhecia entre os aplausos,


Dando a mão a beijar à fidalguia.


Demais um sabichão fizera um livro


Em vinte e tantos volumões in‑fólio,


Obra cheia de mapas e figuras


Em que provava que por linha reta


De Hércules descendia Loriolo


E portanto de Júpiter Tonante.


E apresentou as certidões em cópia


De óbito e nascimento e batistério,


E até de casamento, e para prova


De que nas veias puras do Monarca


Não correra a mais leve bastardia.


É inútil dizer que os tais volumes


Nada contavam sobre o Pai, porqueiro


Como o do Santo Papa Sixto Quinto,


E sobre a mãe do Rei, a velha Mória


Que vendera perus, Deus sabe o resto!


Nos tempos folgazões da mocidade!










XII






Um dia o reino cem navios tocam.


São piratas do Norte! são Normandos!


Infrene multidão nas praias corre,


Levando tudo a ferro até os frades.


Matam, queimam, saqueiam, furtam moças.


E a infrene turba corre até aos paços.






XIII






Enquanto vem a campo a fidalguia


Armada pied en cap, espada em punho,


Loriolo, sem fala, nos apertos


Nas adegas se esconde.






Embalde o chamam,


Embalde corre voz que dos Normandos


Emissário de paz o Rei procura.


El‑Rei suou de susto a roupa inteira.


Nem era de admirar, que a reis e povo,


Como ao bicho‑da‑seda a trovoada,


Camisas de onze `‑aras apavoram


E fazem frio aparições de forca.






XIV






Um soldado Normando que buscava


Nas adegas reais alguma pinga,


Mete a verruma numa velha pipa.


Um grito sai dali, mas não licores.


O soldado feroz destampa o nicho;


Agarra um vulto dentro, mas somente


Sente nas mãos vazia cabeleira


Desembainha a torva durindana.


Nas cavernas da pipa, e nas cavernas


Do coração do Rei reboa o golpe.


Estala‑se o tonel de meio a meio.


Entretanto o bom Rei que não falava,


Sujo da lia da ruinosa pipa,


Mais morto do que vivo (já pensando


Que seu reino acabava num espeto


Como o reino do galo), às cambalhotas


Rola aos pés do soldado, chora e treme,


Gagueja de pavor nos calafrios


E pelo amor de Deus perdão implora.






XV






O soldado, maroto e bom gaiato,


Agarra às costas o real trambolho,


Como um vilão que à feira leva um porco,


E no meio do pátio, entre os despojos,


De pernas para o ar e cara suja


Atira o Bobo






—El‑Rei! clama um fidalgo.






XVI






Porém o Rei não fala… Sua e treme.






"Singofredo o pirata aqui me envia.


(Diz ao Rei o pacífico Mercúrio,


O Arauto de paz que vem de bordo):


Eu venho aqui propor‑vos um tratado.


Por direito de espada e por herança


Singofredo é senhor destes países.


Ele vem reclamar sua coroa.


Se o Rei não se opuser, não corre sangue;


Senão hão de fazê‑lo em sarrabulho,






Puxado p'lo nariz o encher de lado,


E espetar‑lhe a careta sobre um mastro.


Singofredo o feroz exige apenas


Que o Rei deixando o cetro deste reino


Seja sempre na corte Rei da Lua.


Loriolo virá ao seu caminho


Trajando seu gibão amarelado


Com remendos de cor, e campainhas,


Meias roxas e gorro afunilado".






XVII






Loriolo suspira. O povo espera.


Pela face do Bobo corre a furto


Uma lágrima trêmula. — É desgraça


Tendo subido a Rei, voltar. . .






Nem ousa


O nome proferir de sua infâmia.






De repente uma idéia o ilumina....


Deu uma das antigas gargalhadas,


Inda em trajes de rei graceja e pula.






Foi uma dança cômica, fantástica,


Um riso que doía—tão gelado


Coava o coração!. . . Estava doudo. . .


Dançou a gargalhar. . . caiu exausto,


Caiu sem movimento sobre o lodo...


Escutaram‑lhe o peito. Estava morto.






Ora o pirata, o invasor Normando


Era filho da nossa conhecida,


Que, posto não pudesse com acerto


Dizer quem era o pai de seu boemia'






Afirmava contudo afoutamente


Que, em todo o caso, tinha jus ao trono.






Reina pela cidade a bebedeira,


E bebendo à saúde do bastardo


O Bobo que foi rei ninguém sepulta










Bem vês, amigo Puff, que neste conto


Em poucos versos digo histórias longas;


—Amores, mortes, e no trono um bobo


E sobre o lodo um rei que não se enterra.


— Muito embora a mulher as roupas façam,


Eu provo que o burel não faz o monge,


E um bobo é sempre um bobo. Mostro ainda


De meu estro no vário cosmorama


Um rei que numa pipa o trono perde.


E um bastardo que o pai dizer não pode


E em nome de dous pais, ambos em dúvida,


Vem na sangueira reclamar seu nome.






Um outro só com isso dera a lume


Um poema em dez cantos. Sou conciso;


Não ouso tanto: dou somente idéias,


Esboço aqui apenas meu enredo.






Puff! olá, meu Puff! Estás dormindo,


Prosaico beberrão! Acorda um pouco!


Bebeu todo o meu vinho—a empada foi‑se


Não resta‑me esperança! Este demônio


De um poeta como eu nem vale um murro!






UM HOMEM DA PLATÉIA (interrompendo).






Silêncio! fora a peça! que maçada!


Até o ponto dorme a sono solto!













SPLEEN E CHARUTOS






I






SOLIDÃO






Nas nuvens cor de cinza do horizonte


A lua amarelada a face embuça;


Parece que tem frio, e no seu leito


Deitou, para dormir, a carapuça.






Ergueu‑se, vem da noite a vagabunda


Sem xale, sem camisa e sem mantilha,


Vem nua e bela procurar amantes;


É douda por amor da noite a filha.






As nuvens são uns frades de joelhos,


Rezam adormecendo no oratório;


Todos têm o capuz e bons narizes.


E parecem sonhar o refeitório.






As árvores prateiam‑se na praia,


Qual de uma fada os mágicos retiros


O lua, as doces brisas que sussurram


Coam dos lábios teus como suspiros!






Falando ao coração que nota aérea


Deste céu, destas águas se desata?


Canta assim algum gênio adormecido


Das ondas mortas no lençol de prata?






Minha alma tenebrosa se entristece,


É muda como sala mortuária


Deito‑me só e triste, e sem ter fome


Vejo na mesa a ceia solitária.






Ó lua, ó lua bela dos amores,


Se tu és moça e tens um peito amigo,


Não me deixes assim dormir solteiro,


À meia‑noite vem cear comigo!






II






MEU ANJO






Meu anjo tem o encanto, a maravilha


Da espontânea canção dos passarinhos;


Tem os seios tão alvos, tão macios


Como o pêlo sedoso dos arminhos.






Triste de noite na janela a vejo


E de seus lábios o gemido escuto


É leve a criatura vaporosa


Como a frouxa fumaça de um charuto.






Parece até que sobre a fronte angélica


Um anjo lhe depôs coroa e nimbo...


Formosa a vejo assim entre meus sonhos


Mais bela no vapor do meu cachimbo.






Como o vinho espanhol, um beijo dela


Entorna ao sangue a luz do paraíso.


Dá morte num desdém, num beijo vida,


E celestes desmaios num sorriso!






Mas quis a minha sina que seu peito


Não batesse por mim nem um minuto,


E que ela fosse leviana e bela


Como a leve fumaça de um charuto!






III






VAGABUNDO






Eat, drink and love; what can the rest avail us!





BYRON






Eu durmo e vivo no sol como um cigano,


Fumando meu cigarro vaporoso,


Nas noites de verão namoro estrela;


Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!






Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;


Mas tenho na viola uma riqueza:


Canto à lua de noite serenatas,


E quem vive de amor não tem pobreza.






Não invejo ninguém, nem ouço a raiva


Nas cavernas do peito, sufocante,


Quando à noite na treva em mim se entornam


Os reflexos do baile fascinante.






Namoro e sou feliz nos meus amores;


Sou garboso e rapaz... Uma criada


Abrasada de amor por um soneto


Já um beijo me deu subindo a escada...






Oito dias lá vão que ando cismado


Na donzela que ali defronte mora.


Ela ao ver‑me sorri tão docemente!


Desconfio que a moça me namora!..






Tenho por meu palácio as longas ruas;


Passeio a gosto e durmo sem temores;


Quando bebo, sou rei como um poeta,


E o vinho faz sonhar com os amores.






O degrau das igrejas é meu trono,


Minha pátria é o vento que respiro,


Minha mãe é a lua macilenta,


E a preguiça a mulher por quem suspiro.






Escrevo na parede as minhas rimas,


De painéis a carvão adorno a rua;


Como as aves do céu e as flores puras


Abro meu peito ao sol e durmo à lua.






Sinto‑me um coração de lazzaroni;


Sou filho do calor, odeio o frio;


Não creio no diabo nem nos santos.


Rezo à Nossa Senhora, e sou vadio!






Ora, se por aí alguma bela


Bem doirada e amante da preguiça


Quiser a nívea mão unir à minha


Há de achar‑me na Sé, domingo, à Missa.






IV






A LAGARTIXA






A lagartixa ao sol ardente vive


E fazendo verão o corpo espicha:


O clarão de teus olhos me dá vida


Tu és o sol e eu sou a lagartixa.






Amo‑te como o vinho e como o sono,


Tu és meu copo e amoroso leito


Mas teu néctar de amor jamais se esgota,


Travesseiro não há como teu peito.






Possa agora viver: para coroas


Não preciso no prado colher flores;


Engrinaldo melhor a minha fronte


Nas rosas mais gentis de teus amores.






Vale todo um harém a minha bela,


Em fazer‑me ditoso ela capricha;


Vivo ao sol de seus olhos namorados,


Como ao sol de verão a lagartixa.






V






LUAR DE VERÃO






O que vês, trovador?—Eu vejo a lua


Que sem lavor a face ali passeia;


No azul do firmamento inda é mais pálida


Que em cinzas do fogão uma candeia.






O que vês, trovador?—No esguio tronco


Vejo erguer‑se o chinó de uma nogueira.


Além se entorna a luz sobre um rochedo


Tão liso como um pau‑de‑cabeleira.






Nas praias lisas a maré enchente


S'espraia cintilante d'ardentia


Em vez de aromas as doiradas ondas


Respiram efluviosa maresia!






O que vês, trovador?—No céu formoso


Ao sopro dos favônios feiticeiros


Eu vejo—e tremo de paixão ao vê‑las—


As nuvens a dormir, como carneiros.






E vejo além, na sombra do horizonte,


Como viúva moça envolta em luto,


Brilhando em nuvem negra estrela viva


Como na treva a ponta de um charuto.






Teu romantismo bebo, ó minha lua,


A teus raios divinos me abandono,


Torno‑me vaporoso, e só de ver‑te


Eu sinto os lábios meus se abrir de sono.






VI






O POETA MORIBUNDO






Poetas! amanhã ao meu cadáver


Minha tripa cortai mais sonorosa!


Façam dela uma corda, e cantem nela


Os amores da vida esperançosa!






Cantem esse verso que me alentava...


O aroma dos currais, o bezerrinho,


As aves que na sombra suspiravam,


E os sapos que cantavam no caminho!






Coração, por que tremes? Se esta lira


Nas minhas mãos sem força desafina,


Enquanto ao cemitério não te levam


Casa no marimbau a alma divina!






Eu morro qual nas mãos da cozinheira


O marreco piando na agonia . . .


Como o cisne de outrora... que gemendo


Entre os hinos de amor se enternecia.






Coração, por que tremes? Vejo a morte


Ali vem lazarenta e desdentada. ..


Que noiva!. . . E devo então dormir com ela?. ..


Se ela ao menos dormisse mascarada!






Que ruínas! que amor petrificado!


Tão antediluviano e gigantesco!


Ora, façam idéia que ternuras


Terá essa lagarta posta ao fresco!






Antes mil vezes que dormir com ela,


Que dessa fúria o gozo, amor eterno. . .


Se ali não há também amor de velha,


Dêem‑me as caldeiras do terceiro Inferno!






No inferno estão suavíssimas belezas,


Cleópatras, Helenas, Eleonoras;


Lá se namora em boa companhia,


Não pode haver inferno com Senhoras!






Se é verdade que os homens gozadores,


Amigos de no vinho ter consolos,


Foram com Satanás fazer colônia,


Antes lá que no Céu sofrer os tolos!—






Ora! e forcem um'alma qual a minha


Que no altar sacrifica ao Deus‑Preguiça


A cantar ladainha eternamente


E por mil anos ajudar a Missa!









É ELA! É ELA! É ELA! É ELA!






É ela! é ela!—murmurei tremendo,


E o eco ao longe murmurou—é ela!


Eu a vi—minha fada aérea e pura—


A minha lavadeira na janela!






Dessas águas‑furtadas onde eu moro


Eu a vejo estendendo no telhado


Os vestidos de chita, as saias brancas;


Eu a vejo e suspiro enamorado!






Esta noite eu ousei mais atrevido


Nas telhas que estalavam nos meus passos


Ir espiar seu venturoso sono,


Vê‑la mais bela de Morfeu nos braços!






Como dormia! que profundo sono! . . .


Tinha na mão o ferro do engomado. . .


Como roncava maviosa e pura!. . .


Quase caí na rua desmaiado!






Afastei a janela, entrei medroso:


Palpitava‑lhe o seio adormecido...


Fui beijá‑la. . . roubei do seio dela


Um bilhete que estava ali metido. . .






Oh! de certo. . . (pensei) é doce página


Onde a alma derramou gentis amores;


São versos dela. . . que amanhã de certo


Ela me enviará cheios de flores.






Tremi de febre! Venturosa folha!


Quem pousasse contigo neste seio!


Como Otelo beijando a sua esposa,


Eu beijei‑a a tremer de devaneio. .






É ela! é ela!—repeti tremendo;


Mas cantou nesse instante uma coruja...


Abri cioso a página secreta. . .


Oh! meu Deus! era um rol de roupa suja!






Mas se Werther morreu por ver Carlota


Dando pão com manteiga às criancinhas,


Se achou‑a assim mais bela,—eu mais te adoro


Sonhando‑te a lavar as camisinhas!






É ela! é ela! meu amor, minh'alma,


A Laura, a Beatriz que o céu revela. . .


É ela! é ela!—murmurei tremendo,


E o eco ao longe suspirou—é ela!






SONETO






Um mancebo no jogo se descora,


Outro bêbado passa noite e dia,


Um tolo pela valsa viveria


Um passeia a cavalo, outro namora,






Um outro que uma sina má devora


Faz das vidas alheias zombaria,


Outro toma rapé, um outro espia....


Quantos moços perdidos vejo agora!






Oh! não proíbam pois ao meu retiro


Do pensamento ao merencório luto


A fumaça gentil por que suspiro.






Numa fumaça o canto d'alma escuto. . .


Um aroma balsâmico respiro,


Oh! deixai‑me fumar o meu charuto!






S O N E T O






Ao sol do meio‑dia eu vi dormindo


Na calçada da rua um marinheiro,


Roncava a todo o pano o tal brejeiro


Do vinho nos vapores se expandindo!






Além um Espanhol eu vi sorrindo


Saboreando um cigarro feiticeiro,


Enchia de fumaça o quarto inteiro.


Parecia de gosto se esvaindo!






Mais longe estava um pobretão careca


De uma esquina lodosa no retiro


Enlevado tocando uma rabeca!






Venturosa indolência! não deliro


Se morro de preguiça.... o mais é seca!


Desta vida o que mais vale um suspiro?






Toda aquela mulher tem a pureza


Que exala o jasmineiro no perfume,


Lampeja seu olhar nos olhos negros


Como em noite d'escuro um vaga‑lume.






Que suave moreno o de seu rosto!


A alma parece que seu corpo inflama


Ilude até que sobre os lábios dela


Na cor vermelha tem errante chama....






E quem dirá, meu Deus! que a lira d'alma


Ali não tem um som—nem de falsete!


E sob a imagem de aparente fogo


É frio o coração como um sorvete!





O CÔNEGO FILIPE






O cônego Filipe! Ó nome eterno!


Cinzas ilustres que da terra escura


Fazeis rir nos ciprestes as corujas!


Por que tão pobre lira o céu doou‑me


Que não consinta meu inglório gênio


Em vasto e heróico poema decantar‑te?






Voltemos ao assunto. A minha musa


Como um falado Imperador Romano


Distrai‑se às vezes apanhando moscas.


Por estradas mais longas ando sempre.


Com o cônego ilustre me pareço,


Quando ele já sentia vir o sono,


Para poupar caminho até a vela,


Sobre a vela atirava a carapuça.


Então no escuro, em camisola branca


Ia apalpando procurar na sala—


Para o queijo flamengo da careca


Dos defluxos guardar—o negro saco.






À ordem, Musa! Canta agora como


O poeta Ali‑Moon no harém entrando


Como um poeta que enamora a lua,


Ou que beija uma estátua de alabastro,


Suando de calor de sol e amores


Cantava no alaúde enamorado.


E como ele saiu‑se do namoro.


Assunto bem moral, digno de prêmio,


E interessante como um catecismo;


Que tem ares até de ladainha!






Quem não sonhou a terra do Levante?


As noites do Oriente, o mar, as brisas,


Toda aquela sua natureza


Que amorosa suspira e encanta os olhos?






Princípio no harém. Não é tão novo.


Mas esta vida é sempre deleitosa.


As almas d'homem ao harém se voltam—


Ser um dia sultão quem não deseja?






Quem não quisera das sombrias folhas.


Nas horas do calor, junto do lago


As odaliscas espreitar no banho


E mais bela a sultana entre as formosas?






Mas ah! o plágio nem perdão merece!


Digam—pega ladrão!—Confesso o crime,


Não é Ovídio só que imito e sonho


Quando pinta Acteon fitando os olhos






Nas formas nuas de Diana virgem!


Não! embora eu aqui não fale em ninfas,


Essa idéia é do cônego Filipe!






TERZA RIMA






E, belo de entre a cinza ver ardendo


Nas mãos do fumador um bom cigarro,


Sentir o fumo em névoas recendendo,






Do cachimbo alemão no louro barro


Ver a chama vermelha estremecendo


E até perdoem respirar‑lhe o sarro!






Porém o que há mais doce nesta vida,


O que das mágoas desvanece o luto


E dá som a uma alma empobrecida,


Palavra d'honra, és tu, ó meu charuto!






NAMORO A CAVALO






Eu moro em Catumbi. Mas a desgraça


Que rege minha vida malfadada


Pôs lá no fim da rua do Catete


A minha Dulcinéia namorada.






Alugo (três mil réis) por uma tarde


Um cavalo de trote (que esparrela!)


Só para erguer meus olhos suspirando


A minha namorada na janela...






Todo o meu ordenado vai‑se em flores


E em lindas folhas de papel bordado


Onde eu escrevo trêmulo, amoroso,


Algum verso bonito. . . mas furtado.






Morro pela menina, junto dela


Nem ouso suspirar de acanhamento. . .


Se ela quisesse eu acabava a história


Como toda a comédia—em casamento.






Ontem tinha chovido. . . que desgraça!


Eu ia a trote inglês ardendo em chama,


Mas lá vai senão quando uma carroça


Minhas roupas tafuis encheu de lama...






Eu não desanimei. Se Dom Quixote


No Rocinante erguendo a larga espada


Nunca voltou de medo, eu, mais valente,


Fui mesmo sujo ver a namorada. . .






Mas eis que no passar pelo sobrado


Onde habita nas lojas minha bela


Por ver‑me tão lodoso ela irritada


Bateu‑me sobre as ventas a janela...






O cavalo ignorante de namoros


Entre dentes tomou a bofetada,


Arrepia‑se, pula, e dá‑me um tombo


Com pernas para o ar, sobre a calçada. ..






Dei ao diabo os namoros. Escovado


Meu chapéu que sofrera no pagode


Dei de pernas corrido e cabisbaixo


E berrando de raiva como um bode.






Circunstância agravante. A calça inglesa


Rasgou‑se no cair de meio a meio,


O sangue pelas ventas me corria


Em paga do amoroso devaneio!






O EDITOR






—A poesia transcrita é de Torquato,


Desse pobre poeta enamorado


Pelos encantos de Leonora esquiva,


Copiei‑a do próprio manuscrito


E para prova da verdade pura


Deste prólogo meu, basta que eu diga


Que a letra era um garrancho indecifrável,


Mistura de borrões e linhas tortas.


Trouxe‑me do Arqui. . . lá da lua


E decifrou‑ma familiar demônio,


Demais—infelizmente é bem verdade


Que Tasso lastimou‑se da penúria


De não ter um ceitil para a candeia.






Provo com isso que do mundo todo


O sol é este Deus indefinível,


Ouro, prata, papel, ou mesmo cobre,


Mais santo do que os Papas—o dinheiro!


Byron no seu Don Juan votou‑lhe cantos,


Filinto Elísio e Tolentino o sonham,


Foi o Deus de Bocage e d'Aretino,


Aretino, essa incrível criatura


Lívida e tenebrosa, impura e bela,


Sublime e sem pudor, onda de lado,


Em que do gênio profanou‑se a pérola,


Vaso d'ouro que um óxido terrível


Envenenou de morte, alma poeta


Que tudo profanou com as mãos imundas,


E latiu como um cão mordendo um século






Quem não ama o dinheiro? Não me engano


Se creio que Satã à noite veio


Aos ouvidos de Adão adormecido


Na sua hora primeira, murmurar‑lhe


Essa palavra mágica da vida,


Que vibra musical em todo o mundo.






Se houvesse o Deus vintém no Paraíso


Eva não se tentava pelas frutas,


Pela rubra maçã não se perdera;


Preferira de certo o louro amante


Que tine tão suave e é tão macio!










Se não faltasse o tempo a meus trabalhos


Eu mostraria quanto o povo mente


Quando diz—que a poesia enjeita, odeia


As moedinhas doiradas.—É mentira!


Desde Homero (que até pedia cobre),






Virgílio, Horácio, Calderon, Racine,


Boileau e o fabuleiro Lafontaine


E tantos que melhor de certo fora


Dos poetas copiar algum catálogo,


Todos a mil e mil por ele vivem,


E alguns chegaram a morrer por ele!


Eu só peço licença de fazer‑vos


Uma simples pergunta. Na gaveta


Se Camões visse o brilho do dinheiro—


Malfilâtre, Gilbert, o altivo Chatterton


Se o tivessem nas rotas algibeiras


Acaso blasfemando morreriam?






D I N H E I R O






Oh! argent! Avec toi on est beau, jeune,


adoré; on a consideration, honneur,


qualités, vertus. Quand on n'a point d'argent,


on est dans la dépendance de toutes ces


choses et de tout le monde.






CHATEAUBRIAND










Sem ele não há cova—quem enterra


Assim gratis a Deo? O batizado


Também custa dinheiro. Quem namora






Sem pagar as pratinhas ao Mercúrio?


Demais, as Dánaes também o adoram.


Quem imprime seus versos, quem passeia,


Quem sobe a Deputado, até Ministro,


Quem é mesmo Eleitor, embora sábio,


Embora gênio, talentosa fronte, Alma


Romana, se não tem dinheiro?


Fora a canalha de vazios bolsos!






O mundo é para todos.... Certamente,


Assim o disse Deus—mas esse texto


Explica‑se melhor e doutro modo.


Houve um erro de imprensa no Evangelho:


O mundo é um festim—concordo nisso,


Mas não entra ninguém sem ter as louras.1






MINHA DESGRAÇA






Minha desgraça não é ser poeta,


Nem na terra de amor não ter um eco,


E meu anjo de Deus, o meu planeta


Tratar‑me como trata‑se um boneco....






Não é andar de cotovelos rotos,


Ter duro como pedra o travesseiro. . .


Eu sei . O mundo é um lodaçal perdido


Cujo sol (quem mo dera!) é o dinheiro. . .






Minha desgraça, ó cândida donzela


O que faz que o meu peito assim blasfema,


É ter para escrever todo um poema,


E não ter um vintém para uma vela.













GLÓRIA MORIBUNDA






Une fille de joie attendait sur la borne.






THÉOPH. GAUTIER










I






É uma visão medonha uma caveira?


Não tremas de pavor, ergue‑a do lodo.


Foi a cabeça ardente de um poeta,


Outrora à sombra dos cabelos loiros,


Quando o reflexo do viver fogoso


Ali dentro animava o pensamento,


Esta fronte era bela. Aqui nas faces


Formosa palidez cobria o rosto...


Nessas órbitas—ocas, denegridas! —


Como era puro seu olhar sombrio!






Agora tudo é cinza. Resta apenas


A caveira que a alma em si guardava,


Como a concha no mar encerra a pérola,


Como a caçoula a mirra incandescente.






Tu outrora talvez desses‑lhe um beijo;


Por que repugnas levantá‑la agora?


Olha‑a comigo! Que espaçosa fronte!


Quanta vida ali dentro fermentava,


Como a seiva nos ramos do arvoredo!


E a sede em fogo das idéias vivas


Onde está? onde foi? Essa alma errante


Que um dia no viver passou cantando,


Como canta na treva um vagabundo,


Perdeu‑se acaso no sombrio vento,


Como noturna lâmpada, apagou‑se?


E a centelha da vida, o eletrismo


Que as fibras tremulantes agitava


Morreu para animar futuras vidas?






Sorris? eu sou um louco. As utopias,


Os sonhos da ciência nada valem,


A vida é um escárnio sem sentido,


Comédia infame que ensangüenta o lodo.


Há talvez um segredo que ela esconde


Mas esse a morte o sabe e o não revela,


Os túmulos são mudos como o vácuo.


Desde a primeira dor sobre um cadáver,


Quando a primeira mãe entre soluços


Do filho morto os membros apertava


Ao ofegante seio, o peito humano


Caiu tremendo interrogando o túmulo


E a terra sepulcral não respondia.






Levanta‑me do chão essa caveira!


Vou cantar‑te uma página da vida


De uma alma que penou, e já descansa.






II






—Por quem esperas trêmula a desoras,


Mulher da noite, na deserta rua?


A miséria venceu os teus orgulhos,


E vens na treva contratar teu leito?


Vem pois. És bela. Tens no rosto frio


A imagem das Madonas descoradas.


Vagabunda de amor, és bela e pálida.


Será doce em teu seio de morena


Um momento sentir os meus suspiros


Estuantes nos lábios doloridos.


Se inda podes amar, ergue‑te ainda,


Une teu peito ao meu, pálida sombra!—






III






Era uma fronte olímpica e sombria,


Nua ao vento da noite que agitava


As loiras ondas do cabelo solto;


Cabeça de poeta e libertino


Que fogo incerto de embriaguez corava.


Na fronte a palidez, no olhar aceso


O lume errante de uma febre insana.






IV






—Mancebo, quem és tu?






—Que importa o nome?


Um poeta de santas harmonias


Que a Musa obscena do bordel profana.


Na aparição balsâmica dos anjos


Porventura enlevei a mocidade.


Das virgens no cheiroso travesseiro


Porventura dormi... Meu Deus! que sonhos!


Em seios que a inocência adormecia


Repousei minha fronte embevecida.


Amei, mulher! amei!






Que sede intensa!


Secou‑se‑me a torrente do deserto


Que as folhas de frescura borrifava.


Tudo! tudo passou... Amei... Embora!


Quero agora dormir nos teus joelhos.


Nessa esponja da vida inda uma gota


Talvez reste a meus lábios anelantes


Que me dê um assomo de ventura


E um leito onde morrer amando ainda,






E que vida, mulher! que dor profunda,


Faminta como um verme aqui no peito!


Murcha desfaleceu a flor da vida


E cedo morrerá. . . E vós, meus anjos,


Ó Virgem Santa, que eu amei, na lira


A quem votei meu canto deliroso;


Amantes que eu sonhei, que eu amaria


Com todo o fogo juvenil que ainda


Me abrasa o coração, por que fugistes,


Brancas sombras, do céu das esperanças?






Oh! riamos da vida! tudo mente!


Os meus versos gotejam de ironias!


Esse mundo sem fé merece prantos?


À orgia! na saturnal entre a loucura


Derrama o vinho sono e esquecimento






Vinde, belezas que a volúpia inflama!


Bebamos juntos... Cantarei de novo!


A minha alma nas asas do improviso,


Como as aves do céu, voe cantando. . .


Todos caíram ébrios?.. . só eu resto?


Embora! em minha mão a lira pulsa,


Meu peito bate, a inspiração agora


Cânticos imortais ao lábio inspira.


Voai ao céu—não morrereis, meus cantos!






V






A glória! a glória! meu amor foi ela,


Foi meu Deus, o meu sangue... até meu gênio. . .


E agora!... Além os sonhos dessa vida!


Quando eu morrer, meus versos incendeiem!


Apague‑se meu nome—e ao cadáver


Nem lágrimas, nem cruz o mundo vote


Sou um ímpio (disseram‑no!) pois deixem‑me


Descansar no sepulcro!






Por que choras,


Descorada mulher? Sabes acaso


Quem é o triste, o malfadado obscuro


Que delira e desvaira aqui na treva


E tuas mãos aperta convulsivo?


Eu não te posso amar. Meu peito morto


É como a rocha que o oceano bate


E branqueia de escuma—ali não pode


Medrar a flor cheirosa dos enlevos...


Teu amor... Eu descri até dos sonhos....


Demais dentro em tua alma eu vejo trevas,


Uma estrela de Deus não a ilumina.


Quem pudera nas ondas do passado,


Ditoso pescador, erguer no lodo


O ramo de coral de teus amores?






VI






Amei! amei! no sonho, nas vigílias


Esse nome gemi que eu adorava!


Votei amor a tudo quanto é belo!


Escuta A rua é queda. A noite escura


É negra como um túmulo. Durmamos


No leito dos amores do perdido.


Vês? nem lua no céu! tudo é medonho!


Nem estrela de luz . —Silêncio! Embora!


Escuta, anjo da noite! no meu peito


Não ouves palpitar o som da vida?


Deixa encostar meus lábios incendidos


No teu seio que bate. Vem, meu anjo!


A alma da formosura é sempre virgem!


Minha virgem—irmã—meu Deus! Contigo


Oh! deixa‑me viver! Eu sinto bela


A tua alma acordando refletir‑se


Nesses olhos tão negros d'Espanhola.


Quero amar e viver—sonhar—em fogo


Meus frouxos dias exaurir num beijo,


Derramar a teus pés os meus amores,


Minhas santas canções a ti erguê‑las,


A ti, e só a ti!—






VII






—Que tens? desmaias?


Que tens, mancebo?


—Nada. É cedo ainda.


Não é ela ainda não. Chamei por ela. . .


Foi em vão. . . delirei. . .


—Por quem?


—A morte.






—Morrer! pobre de ti, ó meu poeta!






—Se a morte é sofrimento, eu sofro tanto,


Que a mudança do mal será consolo;


Se a morte é sono, meu cansado corpo


No descanso eternal deixai que durma.






—Eu também sofro. . . mas a morte assusta.


Eu mísera mulher nas amarguras


Descorei e perdi a formosura.


No amor impuro profanei minha'alma. ..


E nesta vida não amei contudo!


Não sou a virgem melindrosa e casta


Que nos sonhos da infância os anjos beijam


E entre as rosas da noite adormecera


Tão pura como a noite e como as flores;


Mas na minha'alma dorme amor ainda.


Levanta‑me, poeta, dos abismos


Até ao puro sol do amor dos anjos!


Ó minha vida, minha vida pura,


Por que foram tão breves da inocência


Das crenças virginais os belos dias?


Chamei por Deus em vão. Sobre meu leito


Em vez do anjo do céu senti gelada


Sombra desconhecida vir sentar‑se


Em beijos frios roxear meus lábios,






Em abraços de morte unir‑me ao seio.


Douda! chamei por Deus! a meu reclamo


Veio o torvo Satã... Oh! não maldigas


A mísera que os seios inocentes


Entregou sem pudor a mãos impuras:


Eram taças de Deus... eu bem sabia!


Mas todo o pesadelo do passado


Foi uma horrenda sina... tudo aquilo


Escrevera Satã






VIII






—Fatalidade!


É pois a voz unânime dos mundos.


Das longas gerações que se agonizam


Que sobe aos pés do Eterno como incenso?


Serás tu como os bonzos te fingiram?


Sublime Criador, por que enjeitaste


A pobre criação? Por que a fizeste


Da argila mais impura e negro lado,


E a lançaste nas trevas errabunda


Co'a palidez na fronte como anátema,


Qual lança a borboleta a asas d'oiro


No pântano e no sangue?






Tudo é sina:


O crime é um destino—o gênio, a glória


São palavras mentidas—a virtude


É a máscara vil que o vício cobre.


O egoísmo! eis a voz da humanidade.


Foste sublime, Criador dos mundos!






IX






Tudo morre, meu Deus! No mundo exausto


Bastardas gerações vagam descridas.


E a arte se vendeu, essa arte santa


Que orava de joelhos e vertia


O seu raio de luz e amor no povo,


E o gênio soluçando e moribundo


Olvidou‑se da vida e do futuro


E blasfema lutando na agonia.


Agonia de morte! Só em torno


No leito do morrer as almas gemem.


E o fantasma da morte gela tudo.


Por que um ardente amor não mais suspira


Notas do coração pelo silêncio


Da noite enamorada? A chama pura


Por que das almas se apagou nas cinzas


E a lira do poeta. se murmura


As ilusões de um mundo visionário,


Por que estala tão cedo? Vagabundo


Adormeci das árvores na sombra


E nos campos em flor errei sonhando,


Coroando‑me dos lírios da alvorada.


Arvore prateada da esperança.


Sombra das ilusões, ó vida bela


E sempre bela, e no morrer ainda,


Por que pousei a fronte sobre a relva


A sombra vossa, delirante um dia?






Oh! que morro também! na noite d'alma


Sinto‑o no peito que um ardor consome,


No meu gênio que apaga nas orgias,


Que foge o mundo, e o sepulcro teme . .


Exilei‑me dos homens blasfemando,


Concentrei‑me no fundo desespero,


E exausto de esperança e zombarias


Como um corpo no túmulo lancei‑me,


Suicida da fé, no vício impuro.






X






E o mundo? não me entende. Para as turbas


Eu sou um doudo que se aponta ao dedo.


A glória é essa. P'ra viver um dia


Troquei o manto de cantor divino


Pelas roupas do insano.—Os sons profundos


Ninguém os aplaudia sobre a terra.


Para um pouco de pão ganhar da turba,


Como teu corpo no bordel profanas.


—Fiz mais ainda! prostituí meu gênio.


Oh! ditoso Filinto! ele sim pôde


Na miséria guardar seu gênio puro!


Nunca infame beijou a mão dos grandes!


Morreu como Camões, morreu sem nódoa!


Mas eu! A voz do vício arrebatou‑me,


Fascinou‑me da infâmia o revérbero .


Maldições sobre mim! Abre‑te, ó campa!


Ali obscuro dormirei na treva






XI






O santa inspiração! fada noturna,


Por que a fronte não beijas do poeta?


Por que não lhe descansas nos cabelos


A coroa dos sonhos, e rebentam‑lhe


Entre as lívidas mãos uma por uma


As cordas do alaúde no vibrá‑las?


Ó santa inspiração! por que nas sombras


Não escuta o poeta à meia‑noite


Os sons perdidos da harmonia santa


Que o pobre coração de amor lhe enchiam?






Eu fui à noite da taverna à mesa


Bater meu copo à taça do bandido.


Na louca saturnal beber com ele,


Ouvir‑lhe os cantos da sangrenta vida


E as lendas de punhal e morticínio.


De vinho e febre pálido, deitei‑me


Sobre o leito venal de uma perdida. . .


Comprimi‑a no meu exausto peito.


Falei‑lhe em meu amor, contei‑lhe sonhos,


Do meu passado a dor, as glórias murchas


E os longos beijos da primeira amante...






Amor! amor! meu sonho de mancebo!


Minha sede! meu canto de saudade!


Amor! Meu coração, lábios e vida


A ti, sol do viver, erguem‑se ainda,


E a ti, sol do viver, erguem‑se embalde!






Ouvi, ouvi no leito da miséria


A pálida mulher junto a meu peito


Contar‑me seus amores que passaram,


Falar‑me de purezas, d'esperanças....


E soluçava a triste, e ardentes longas,


As lágrimas em fio deslizando


Eu vi caindo sobre o seio dela. . .






Oh! suas emoções, úmidos beijos,


Dos seios o tremor, aqueles prantos,


E os ofegantes ais eram mentira! .






XII






Ah! vem, alma sombria que pranteias.


Por quem choras? Por mim?


Em vez de prantos


Deixa‑me suspirar a teus joelhos.


Tu sim és pura. Os anjos da inocência


Poderiam amar sobre teu seio.


Aperta minha mão! Senta‑te um pouco


Bem unida a minha alma em meus joelhos,


Assim parece que um abraço aperta


Nossas almas que sofrem. Revivamos!


O passado é um sonho—o mundo é largo,


Fugiremos à pátria. Iremos longe


Habitar num deserto. No meu peito


Eu tenho amores para encher de encantos


Uma alma de mulher Por que sorriste?


Sou um louco. Maldita a folha negra


Em que Deus escreveu a minha sina .


Maldita minha mãe, que entre os joelhos


Não soubeste apertar, quando eu nascia,


O meu corpo infantil! Maldita!






XIII





Escuta:


Sinto uma voz no peito que suspira.


É a alma do poeta que desperta


E canta como as aves acordando


Oh! cantemos! até que a morte fria






Gele nos lábios meus o último canto!


Um cântico de amor, ó minha lira!


Anália! Armia! aparições formosas!


Eu amei sobre a terra as vossas sombras,


O ideal que vos anima e eu buscava,


Vive apenas no céu! vou entre os anjos,


Entre os braços da morte amar com eles!—






XIV






O poeta a tremer caiu no lodo.


A perdida tomou‑lhe a fronte branca,


Pô‑la ao colo—era lívida—inda o fogo


Lá dentro vacilava agonizando,


Como flutua a claridão da lâmpada


Apagando‑se ao vento.






E quando a aurora


Nos céus de nácar acordava o dia,


E nas nuvens azuis o sol purpúreo


Se embalava no eflúvio de ventura


Das flores que se abriam, dos perfumes,


Da brisa morna que tremia as folhas,


Macilenta a mulher no chão da rua


Sentada, a fronte curva sobre os seios


Embalava cantando aquele morto.






Na manta o encobriu. Medrosa a furto


A infeliz o beijou—o pobre amante


Que uma só noite pernoitou com ela


Para aos pés lhe morrer—e sem ao menos


Nas faces dela estremecer um beijo.


Alguém que ali passou, vendo‑a tão pálida






Sentada sobre a laje, e tão ardente,


Chegou ao pé—ergueu ao malfadado


A manta.






Como súbito acordando


Disse a moça a tremer:






—Deixa-o agora.


Ele penou de febre toda a noite,


Deitou‑se descansando sobre o leito...


Oh! deixa‑o dormir.






—Mulher no peito


Sabes quem te dormiu?






—"Que importa o nome?"


Assim falava‑me…






—Ai de ti, misérrima!


Um poeta morreu. Fronte divina,


Alma cheia de sol, fronte sublime


Que de um anjo devera no regaço


Amorosa viver. . . Morreu Bocage!









O POEMA DO FRADE






(Fragmentos interligados)






Meu herói é um moço preguiçoso


Que viveu e bebia porventura


Como vós, meu leitor... se era formoso


Ao certo não o sei. Em mesa impura


Esgotara com lábio fervoroso


Como vós e como eu a taça escura.


Era pálido sim. . . mas não d'estudo:


No mais . . era um devasso e disse tudo!






Dizer que era poeta—é cousa velha!


No século da luz assim é todo


O que herói de novelas assemelha.


Vemos agora a poesia a rodo!


Nem há nos botequins face vermelha,


Amarelo caixeiro, alma de lado,


Nem Bocage d'esquina, vate imundo,


Que não se creia um Dante vagabundo!






O meu não era assim: não se imprimia,


Nem versos no teatro declamava!


Só quando o fogo do licor corria


Da fronte no palor que avermelhava,


Com as convulsas mãos a taça enchia.


Então a inspiração lhe afervorava


E do vinho no! eflúvio e nos ressábios


Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!






Se era nobre ou plebeu, ou rico ou pobre


Não vos direi também: que importa o manto


Se é belo o cavaleiro que ele cobre?


E que importa o passado, um nome santo


De pútridos avós? plebeu ou nobre


Somente a raiva lhe acordava o pranto.


Embuçada no orgulho a fronte erguia


E do povo e dos reis escarnecia!






Não se lançara nas plebéias lutas,


Nem nas falanges do passado herdeiras,


No turbilhão das multidões hirsutas,


Não se enlaivou da pátria nas sangueiras,


Nem da praça no pó das vis disputas!


Sonhava sim em tradições guerreiras,


Nos cânticos de bardo sublimado...


Mas nas épicas sombras do passado.






O presente julgava um mar de lama


Onde vis ambições se debatiam,


Ruína imunda que lambera a chama,


Cadáver que aves fétidas roíam!


Tudo sentiu venal! e ingrata a fama!


Como torrentes trépidas corriam


As glórias, tradições, coroas soltas


De um mar de infâmias às marés revoltas!






Não quisera mirar a face bela


Nesse espelho de lodo ensangüentado!


A embriaguez preferia: em meio dela


Não viriam cuspir‑lhe o seu passado!


Como em nevoento mar perdida vela


Nos vapores do vinho assombreado


Preferia das noites na demência


Boiar (como um cadáver!) na existência!






Uma vez o escutei: todos dormiam—


Junto à mesa deserta e quase escura:


Lembranças do passado lhe volviam;


Não podia dormir! Na festa impura


Fora afogar escárnios que doíam. . .


Não o pode: dos lábios na amargura


Ouvi‑lhe um murmurar. . Eram sentidas


Agonias das noites consumidas!






Olvidei a canção: só lembro dela


Que d'alma a languidez a estremecia:


Como um anjo num sonho de donzela


Sobre o peito a guitarra lhe gemia!


E quando à frouxa lua, da janela,


Cheia a face de lágrimas erguia,


Como as brisas do amor lhe palpitavam


Os lábios no palor que bafejavam!






Amar, beber, dormir, eis o que amava:


Perfumava de amor a vida inteira,


Como o cantor de Don Juan pensava


Que é da vida o melhor a bebedeira. . .


E a sua filosofia executava. . .


Como Alfred Musset, a tanta asneira


Acrescento porém… juro o que digo!


Não se parece Jônatas comigo.






Prometi um poema, e nesse dia


Em que a tanto obriguei a minha idéia


Não prometi por certo a biografia


Do sublime cantor desta Epopéia.


Consagro a outro fim minha harmonia


Por favor cantarei nesta Odisséia


De Jônatas a glória não sabida


Mas não quero contar a minha vida.










Basta! foi longo o prólogo confesso!


Mas é preciso à casa uma fachada,


A fronte da mulher um adereço,


No muro um lampião à torta escada!


E agora desse canto me despeço


Com a face de lágrimas banhada,


Qual o moço Don Juan no enjôo rola


Chorando sobre a carta da Espanhola.1






Mas eu sei: que senti o amor ardente


Convulsivo bater num peito exausto!


Sei: que senti a lágrima tremente


Como na insana palidez o Fausto!


Quando o sono fugia às noites minhas


Como às nuvens do inverno as andorinhas.






Bebi‑a essa tristeza, essa doença


Que nos escalda lágrimas sombrias,


Que nos revolve sós na vaga imensa


Do Oceano das internas agonias!


Que empalidece a face e morte lenta


Nos estampa na fronte macilenta.






Ah! virgem das canções, entre vapores


És pura e bela sim, porém teus lábios


Me fazem delirar como licores


Que afervoram‑nos tépidos ressábios!


Quando em teu colo vou deitar‑me agora


Teu palpitar as faces me descora!






E cedo morrerei: sinto‑o, nas veias


O meu sangue se escoa vagaroso


Como um rio que seca nas areias,


Como donzela, que desmaia em gozo!


Teus lábios, fada minha, me queimaram,


E as lânguidas artérias me esgotaram!






Mas que importa nas sombras da existência


Se mentiu‑me o sonhar quando eu sentia


Um dos pálidos anjos de inocência


Pousar‑me a face ao peito que gemia,


Se num sonho de amor, em noite bela


Nos suspiros do mar amei com ela!






Era uma lua pálida e sombria


Que seu leito nas ondas embalava


Na mão de neve a face lhe pendia;


E nos sonhos a virgem se enlevava!


E, que estrelas no céu! e que ardentia!


Que perfume seu véu estremecia!






E que sonhos, meu Deus! e que ventura!


E que vento de amores palpitava


Na escuma do batel a vaga pura


E lascivos suspiros lhe arrulhava!. . .


E em torno mar e céu—a noite bela,


Nos meus braços a inânida donzela!






Ah! virgem das canções, aos brancos lírios


Por que tão cedo me chover na infância


O mágico sereno dos delírios


Que adormece, embalsama na fragrância?


E do amor entre os lânguidos conselhos


Minha fronte embalar nos teus joelhos?






Por que tão cedo o vinho da harmonia


Nos beiços infantis correu‑me aos sonhos,


Entornou‑me essa nuvem que inebria,


Que gela o riso aos lábios meus risonhos?


Tão quedo o sono meu, por que turvá‑lo,


E de ilusões esplêndidas povoá‑lo?






E tão cedo! por que encher meu leito


Destas sombras suaves, delirantes?


E na harpa adormecida de meu peito


Suspirarem‑me sons tão ofegantes?


E por que não deixar o meu sentir


Da infância d'oiro nos frouxéis dormir?






E assim eu morrerei: co'a sede ainda


Amargosa no lábio ressicado!


Cansando os olhos na extensão infinda,


Perguntando se a crença do passado


Também verei no lodo revolvida. . .


E como tu sufocarei a vida!...






É sombrio, confesso‑vos, meu canto:


E obscuro demais, o que é defeito!


Mas é um sonho apenas que recanto,


Que em noite longa me gelou no leito—


Sonho de febre, insano pesadelo


Que à fronte me deixou pálido selo!






Não teve o Dante mágoa mais profunda


Quando na sombra ergueu o condenado,


De um crânio carcomido a boca imunda


E enxugou‑a em cabelo ensangüentado:


E contou sua lívida vingança


Na mansão da eternal desesperança!






Nem mais estremeceu quando o passado


Do túmulo na sânie revivia. . .


Quando o velho rugindo sufocado


De fome e raiva ainda se torcia. . .


Como quando as crianças se mordiam,


E ardentes, moribundas, pão! pediam!






Quando contou as noites regeladas


E o ar da podridão. . . e a fome impura


Saciando nas carnes desnervadas


De seus filhos. . . de sua criatura!


Como a pantera emagrecida come


Os filhos mortos p'ra cevar a fome!






Acordei ao tremer de calafrios


Com o peito de mágoas transbordando;


Enxuguei com a mão suores frios


Que sentia na face porejando!


E um dia o pesadelo que eu sentira


Mesclou‑se aos moles sons de minha lira.






Mesclou‑se como ao vinho um ditirambo,


Ao farfalhar de Pança 3 um velho adágio,


Às alvas flores se mistura o jambo


E um ósculo de amor em um naufrágio.


—Creio que vou dizer alguma asneira. . .


Como o nome de Deus à bebedeira!






Escrevi o meu sonho. Nas estâncias


Há lágrimas e beijos e ironias,


Como de noite muda nas fragrâncias


Perde‑se um ai de ignotas agonias!


Tudo é assim—no sonho o pesadelo,


—Em almas de Madona quanto gelo!






É assim o viver. Por noite bela


Não durmas ao relento na janela


Contemplando o luar e o mar dormente.


Poderá apanha‑te de repente


Fria constipação, febre amarela,


Ou alguma prosaica dor num dente!






Vai, c'oa mão sobre o peito macilento


Curvado como um velho peregrino,


Vai, tu que sofres, implorar—sedento


Um remédio de amor a teu destino!. . .


Um doutor sanará o teu tormento


Com três xícaras d'óleo de rícino






Eu vi, eu vi um tipo de Madona


Que os ares perfumava de beleza:


Que suave mulher! ah! não ressona


Uma virgem de Deus com tal pureza!


Era um lago a dormir... na flor sereno!


Porém sua água azul tinha veneno!






E agora—boa‑noite! eu me despeço


Desta vez para sempre do poema:


Como soberbo sou, perdões não peço.


Mas como sou chorão, deixai que gema,


Que dê largas a est'alma intumescida


Na dor de tão solene despedida!






Que prantos! que suspiros sufocados!


Se eu gostasse dos versos eloqüentes,


Como eu descreveria bem rimados


Do meu peito os anélitos frementes!


Porém nos seios eu sufoco tudo,


Porque da mágoa o serafim é mudo.






Silêncio, coração que a dor inflama!


Além do escárnio, sons! quero o meu leito


Das lágrimas banhar que a dor derrama!


Quero chorar! quero chorar! meu peito!


Dizer adeus ao sonho que eu sentira,


Sem profanar as ilusões na lira!






Eu não as profanei! guardo‑as sentidas


Nas longas noites do cismar aéreo,


Guardo‑as na esperança, nas doridas


Horas que amor perfuma de mistério!


Sem remorso, nem dor, aos sonhos meus


Eu posso ainda murmurar—adeus!!






Ah! que na lira se arrebente a corda


Quando profana mão os sons lhe acorda!


E o pobre sonhador a fantasia,


O sonho que ama e beija noite e dia


Não saiba traduzir, quando transborda


Seu peito dos alentos da harmonia!






Que não possa gemer a voz saudosa


Como o sopro dos ventos avendiços,


Como a noite que exala‑se amorosa!


Como o gemer dos ramos dobradiços!


Para exprimir os pensamentos meus


Nos cantos melancólicos do adeus!






Adeus! . . é renunciar numa agonia


A esperança que ainda nos palpita;


Sentir que os olhos cegam‑se, que esfria


O coração na lágrima maldita!


Que inteiriçam as mãos, e a alma aflita


Como Ágar no deserto ora sombria!






Sentir que tudo em nós se gela e chora,


E o coração de lágrimas se vela!


E a natureza além revive agora,


E a existência por viver, mais bela


Novas delícias, novo amor revela


Do luzente porvir na roxa aurora!






Sentir que se era poeta... à brisa errante


Bebendo eflúvio que ninguém respira,


Pressentindo à donzela palpitante


Os enlevos, os ais, e o sonho amante


Que nos beija no berço sussurrante,


E o perfume que a música transpira!






Adeus! é uma gota de mistério


Que Deus nos orvalhou como sereno!


É a dor volutuosa—o bafo aéreo


Que derrama perfumes e veneno!


E a cisma que rola, que resvala,


Que os pensamentos no desejo embala!






Saibo do céu que aviva na lembrança


Que é um filho de Deus o moribundo


A quem se fana a tímida esperança!


Que é dos anjos irmão e que é no fundo


Do Oceano do viver, que o vagabundo


A pérola do amor talvez alcança.






E as crenças sentir uma por uma


Que se adormecem e o batel da vida


No Oceano escuro cobre‑se d'escuma


E se afunda no mar e dolorida


A alma do marinheiro empalecida


Ao arrebol da morte se perfuma!






Adeus! tudo que amei! o vento frio


Sobre as ondas revoltas me arrebata,


Além a terra perde‑se o navio


Trilha nos mares sobre um chão de prata!


Adeus! tudo que amei, que me retrata


Inda a saudade ao terno desvario!






Meu céu! minhas montanhas verdejantes!


Cetim azul da lânguida baía!


Manhas cheias de brisas sussurrantes,


Noites cheias de estrelas e ardentia!


Oh! noite de luar! oh! melodias


Que nas folhas gemeis,; ventos errantes!






Vales cheirosos onde a infância minha


Virgem peregrinou entre mil sonhos!


Noites, luas, estrelas da noitinha


Que os lábios entrebristes‑me risonhos,


E orvalháveis de morno sentimento


A aberta flor do coração sedento!






Silêncio que eu amei, que eu procurava


Na varanda romântica e sombria,


Sorvendo dentro em mim ar que sentia


Na fresca viração que se acordava!


Suspirando a cismar nessa atonia


Que de amor minhas pálpebras banhava!






Sobre as colunas o luar batendo


E nas palmeiras úmidas tremendo


Filtrava‑me sossego, e o mole engano


Em que se abisma o pensamento insano,


Que empalece da noite os sons bebendo


E harmonias escuta no Oceano!






E vós, águas do mar, que me embalava


Ao som dos remos da gentil falua!


Onde a fronte de escumas se banhava,


E à morta luz da vagabunda lua


Cismava como a nuvem que flutua


Do escravo à nênia estranha que soava!






Oh! minha terra! oh! tarde recendente


Que embalsamando vens com teus cabelos


Derramados à luz! O sol ardente


Como os lábios do amor! luares belos


Como das flores de laranja o cheiro


Que perfumam da noiva o travesseiro!






E adeus, vós que eu amei, que inda sentidas


As ilusões me acordam na tristeza!


Que inda choro nas minhas despedidas!


Belas dos sonhos! anjos de beleza!


Morenas a quem banha a morbidezza!


Como as rosas da noiva empalecidas






Ai todos vos sonhei cândidos seios


Onde amor pranteara delirante!


Onde gemera em derretido enleio


Como em seios de mãe sedento infante!


Águas místicas aonde estrelas santas


Deixaram trilhos das argênteas plantas!






Como o triste Alcion vagueia errante


Nas frias primaveras do Oceano


E ama as alvas, a noite sussurrante,


Tardes, ondas e sol e leviano


Na leviana afeição embriaga insano


A existência nos seios o inconstante!






Eu todos vos amei! cri no mistério


Que o libertino Don Juan levava,


Nas noites profanadas do adultério,


Quando a alma sedenta evaporava!


E a vida como um alaúde aéreo


A todos os alentos entregava!






Terra do amor! ó minha mãe! na vida


Se o fado me levar em mágoa lenta—


Sempre nesta saudade esmorecida


Que de tristes lembranças se alimenta!—


Na morte a minha fronte macilenta,


Inda a ti volverei qual flor à vida!






Viverei do que foi—dos sonhos meus!—


Da seiva do passado hei de essa flor


Regar das quentes lágrimas do amor!


E quando a luz apague‑se nos céus


E o frio coração à dor sucumba


Inda murmurarei—adeus!—da tumba,









O POEMA DE UM LOUCO






(Fragmento de "O Conde Lopo")






There is something which I dread It is a dark, a fearful thing.






. . . . . . . . .






That thought comes o'er me in the hour Of grief, of sickness, of sadness 'Tis not the dread of death! 'tis more —It is the dread of madness.






LUCRETIA DAVIDSON






I






Foi poeta: cantou, e o estro em fogo


Crestou‑lhe o peito, devorou seus dias


E a febre ardente desbotou‑lhe a fronte


Em dores sós, em delirar insano.






Foi poeta: cantou, sonhou: a vida


Canto e sonhos lhe foi. Amor e glória


Com asas brancas viu sorrindo em vôos.


Foi‑lhe vida sonhar: e ardentes sonhos


A fronte lhe acenderam, lhe estrelaram


Mágico da existência o firmamento.


Cantou, sonhou—amou:: cantos e sonhos


Em amor converteu‑os. De joelhos


Em fundo enlevo ele esperou baixasse


Alguma luz do céu, que amor dissesse—






Anjo ou mulher! embora que ele a amara


C'o fogo queimador que o consumia


Com o amor de poeta que o matava!


Anjo ou mulher—embora! e em longas preces


Noite e dia o esperou—Mísero! Embalde!






Sonhou—amou—cantou: em loucos versos


Evaporou a vida absorta em sonhos—


E debalde! ninguém chorou‑lhe os prantos


Que sobre as mortas ilusões já findas


Pálido derramara—


Amou! E um peito


Junto ao seu não ouviu bater consoante


C'os amores do seu! Ninguém amou‑o


E nem as mágoas lhe afogou num beijo! —






E morreu sem amor.—Bateu‑lhe embalde


O pobre coração em loucas ânsias.


Passou ignoto, solitário e triste


Entre os anjos do amor, só viu‑lhe risos


Em braços doutros—e invejosa mágoa


Essa alheia ventura só lhe trouxe.


Nunca a mão dele de uma fronte branca


A alva coroa fez cair da virgem—


Jovem, solteiro, sem consórcio d'alma






Entre as rosas da vida—mas nenhuma


Nem deu‑lhe um riso—nem do moço pálido


No imo d'alma guardou uma saudade!






Mas se à terra saudades não deixara


Não levou‑as também—do peito o orgulho


Que ninguém quis amar, ninguém amou.


—Foi‑lhe quimera o amor, não mais lembrou‑o,


Tentou‑o ao menos. —E que importa um morto?


— Doido é quem geme em lagrimar estéril—


Quando o luto findou e alegre o baile


Corre entre flores no valsar, quem lembra


O defunto que é podre no jazigo?


—Morrera‑lhe o sonhar—por que chorá‑lo?






E morreu sem amor! E ele contudo


Tinha no peito tanto amor e vida!


Alma de sonhos, tão ardentes, cheia!


E anelante do amor do peito—em outro


Em horas ternas efundir em beijos!






E às vezes quando a fronte pela febre


Pesada e quente sobre as mãos firmava,


Quando esse delirar febril da insônia


Em vertigens travava de sua alma,


Um negro pensamento lhe passava


Como um fuzil no cérebro fervente,


E pensava dos loucos no delírio,


Na escura treva da vertigem tonta!


Temia—a morte não—mas—a loucura.













INVOCAÇÃO






Variações em todas as cordas






I






Alma de fogo, coração de lavas,


Misterioso Bretão de ardentes sonhos


Minha musa serás—poeta altivo


Das brumas de Albion, fronte acendida


Em túrbido ferver!—a ti portanto,


Errante trovador d'alma sombria,


Do meu poema os delirantes versos!






II






Foste poeta, Byron! a onda uivando


Embalou‑te o cismar—e ao som dos ventos


Das selváticas fibras de tua harpa


Exalou‑se o rugir entre lamentos!






III






De infrene inspiração a voz ardente


Como o galope do corcel da Ucrânia


Em corrente febril que alaga o peito


A quem não rouba o coração—ao ler‑te?


Foste Ariosto no correr dos versos,


Foste Dante no canto tenebroso,


Camões no amor e Tasso na doçura,


Foste poeta, Byron!


Foi‑te a imaginação rápida nuvem


Que arrasta o vento no rugir medonho—


Foi‑te a alma uma caudal a despenhar‑se


Das rochas negras em mugido imenso.


Leste no seio, ao coração, o inferno,


Como teu Manfred desfraldando à noite


O escurecido véu.—E riste, Byron,


Que do mundo o fingir merece apenas


Negro sarcasmo em lábios de poeta.


Foste poeta, Byron!






IV






A ti meu canto pois—cantor das mágoas


De profunda agonia! —a ti meus hinos,


Poeta da tormenta—alma dormida


Ao som do uivar das feras do oceano,


Bardo sublime das Britânias brumas!






1






Foi‑te férreo o viver—enigma a todos


Foi o teu coração!


Da fronte no palor fervente em lavas


Um gênio ardente e fundo:


O mundo não te amou e riste dele


—Poeta—o que era‑te o mundo?


Foste, Manfred, sonhar nas serras ermas


Entre os tufões da noite—


E em teu Jungfrau—a mão da realidade


As ilusões quebrou‑te!


Como um gênio perdido—em rochas negras


Paraste à beira‑mar.


Do escuro céu falando às nuvens—solto


O negro manto ao ar!


O mar bramiu‑te o hino da borrasca


E em pé—no peito os braços—


O riso irônico—vinha o azul relâmpago


T'esclarecer a espaços.


A fonte nua o rorejar da noite


Frio—te umedecia


E acima o céu—e além o mar te olhava


C'os olhos da ardentia!






2






As volúpias da noite descoraram‑te


A fronte enfebrecida


Em vinho e beijos—afogaste em gozo


Os teus sonhos da vida.


E sempre sem amor, vagaste sempre


Pálido Dom João!


Sem alma que entendesse a dor que o peito


Te fizera em vulcão!






3






Da absorta mente os sonhos te quebrava


Do mundo o sussurrar.


E foste livre refazer teu peito


Ao ar livre do mar.


E quando o barco d'alta noite aos ventos


Entre as vagas corria


E d'astro incerto o alvor te prateava


A palidez sombria,


Era‑te amor o pleitear das águas


Nos rochedos cavados—


E amargo te franzia um rir de gozo


Os lábios descorados!


E amaste o vendaval, que as folhas trêmulas


Das florestas varria—


E o mar—alto a rugir—que a ouvi‑lo, a fronte


Altiva se te erguia!


E amaste negro o céu—o mar—a noite


E entre a noite—o trovão!


Num crânio zombador brindaste aos mortos.


Cantor da destruição






4






E um dia as faces desbotou‑te a morte


De alvor, frio e letal


Deram‑te em presa aos vermes—Mas que importa


Se é teu nome imortal?






Se foste sobranceiro na peleja


Como o foras nos cantos—


Se o grego litoral e o mar que o banha


Por ti beberam prantos?


Se do levante as virações correndo


Nos mares orientais


Deram‑te nênias no sussurro trêmulo,


Byron, se o nome teu lembra um espírito


Das glórias decaído


E fez‑te o coração os teus poemas


De coração perdido,


Se co'a dor de teus hinos simpatizam


Duma alma os turvos imos


E o teu sarcasmo queimador consola


E contigo sorrimos?






5






Vem, pois, poeta amargo da descrença


Meu Lara vagabundo—


E co'a taça na mão e o fel nos lábios


Zombaremos do mundo!













O LIVRO DE FRA. GONDICÁRIO






(Fragmentos em ritmo de poesia em prosa)






I






Era em Veneza. O sol descaía, no manto rubro do crepúsculo, como um rajá da Índia fulgente de jóias nos estofos de damasco do seu divã—e o mar ao longe cintilava numa esteira de rubis e lantejoulas como o fagulhar da queimada a estorcer‑se pelos verdumes crepitantes da montanha.






E o céu sorria vermelho como os lábios de uma rosa aberta, e as nuvens passavam lentas como galeotas desertas nas praias de Stambul a Soberana, e as brisas roçavam pelas águas suspirosas como os beijos a furto dos lábios vermelhos da Odalisca pela fronte escura do Califa adormecido à sombra dos romaes de Granada a Mourisca, e como o correr da pátena d'oiro nos festins Romanos pelos lábios das Bacantes coroadas das eras de saturnal—e as falas da mulher no devassar da orgia, pelos ouvidos indiferentes do ébrio de vinho e volúpias.






E a tarde era louçã como o amanhecer de fadas e um anoitecer de lua quando o corpo de Febe a nua desmaia no lençol azul dos mares.






E a tarde era louçã como esses beijos a furto nos carnavais Italianos no lacre de uns lábios risonhos dentre as rendas bordadas da máscara de veludo—era louçã e bela com seu dossel carmesim e seus lírios roxos, com seu horizonte de fogos furta‑cores—e suas nuvens de púrpura e crisólito—de neves e sangue—e seu mar cintilante como o manto de veludos estrelados da rainha do Adria, se alvoroçando ao desflorar das aragens da tarde, que aí se perdia no além azulado das montanhas.






Era numa dessas belas ruas de Veneza, onde por entre as casarias vermelhas espelha‑se o ondular das águas, como a lamina de um montante de Damasco . .. Não lhe sei o nome. Entrevia‑a apenas no deslumbre de um devaneio, sonhei‑a, criei‑a pelo meu sonho com suas visões de mulheres, seus suspiros de alaúde e de mandara, seus hálitos embalsamados.






Era numa rua de Veneza.—À porta de um palácio estava sentado um vulto embuçado num manto branco.






Era uma dessas feições soberbas do mar além do Me" diterrâneo desses Almogávares denegridos que nas horas do Combate ao reluzir da folha curva do Iatagã aos raios do meio‑dia, aos brados guerreiros pelo Alá dos Bárbaros, se acardumam soberbos em torno dos Adaís do deserto.






Um daqueles bustos altivos que o mancebo poeta talvez entreviu no sonho de Otelo, o negro.






Era uma fronte larga e abassanada avultando sob as pregas do Caftã branco, uns olhos vivos como os dos chacais nas noites sem estrelas, uivando ao redor das tendas da caravana,—o bigode basto e negro—e a barba longa ondando sobre o embuço do albornoz selvagem.






O que aí fazia o Árabe nem o sei talvez—o sonho não m'o preveniu.






Parecia‑me apenas que uma nuvem negra lhe corria pela fronte como uma sombra na face cor de aço de um lago em noites pardacentas—e seus olhos inquietos se perdiam nos longes do Canal.






Sonhava? E entrevia nos aléns as paragens do oásis, com seu manto de relvas e seus quiosques de sombrios palmares onde o Bulbul Z da Arábia gorjeia os amores das rosas? e entre os verdumes o branquear das tendas da tribo, o reluzir das lanças dos Spahis Cavaleiros, o relinchar das éguas reluzidas esquias dos Agas valentes






Sonhava? E entrevia no fresco de algum arvoredo, na margem sombria da cisterna do deserto, o roupão branco e o turbante caído, e o manto acetinado de cabelos pelos seios nus,—alguma Gulnare ou Rachyma, Iantha ou Juana a Espanhola—flor de romã aberta mais viva no transplantar do harém, pérola colhida nas praias floridas da Espanha, Grécia ou Itália?






Sonhava? E entrevia nuns olhos úmidos de mulher lágrimas por eles, nos seios torneados e altivos onde um suspiro flutua e morre, algum anseio de volúpia, algum rever lânguido das ebriedades no aperto do seio do amante?






Mas não.—Não era talvez o colo envolto de pérolas da escrava, e os olhares longos da Espanhola, e o cravo dos lábios da Grega na sesta do palmar—Não era talvez o amor da filha das barracas nômadas do Islamita, nem saudades bélicas da terra dos tamareiras






A noite caía—e o céu faiscava de aljôfares—e a lua se erguia atrás dos desenhos fantásticos, e das cúpulas brancas da catedral de S. Marcos—como a noiva ao través do seu véu de virgem—fitando seus longos olhares sobre a cidade dormida num leito de pedra.






II






A lua se erguera, pálida como a Febe antiga, a ninfa desmaiada de Delos, depois das longas noites em que ao fresco dos arvoredos ela contemplava o sossegado dormir de Céfalo — e seus raios brancos escorriam pela frente dos palácios como a melena das algas gotejantes nos penhais






Um vulto apareceu numa das sacadas do palácio. Dava‑lhe o luar em cheio no rosto pálido.—A fronte alta e descarada sombreavam‑lha os longos cabelos negros e reluzentes.—Um manto de veludo o embucava—Havia aí nessa figura escura um não sei que de belo; havia ai nessa descor desfeita, no desalinho dos cabelos, umas sombras misteriosas, que travavam de vencida o olhar.— Disséreis Childe Harold... a unidade convergente de todos os sonhos do poeta—a sombra de Byron que lhe corria em todas as idéias—como a imagem pensativa e melancólica de Karl Moor em todas as criações de Schiller.





AO LUAR






Esperaba, desperado.






III






Era—a do vulto da janela—uma dessas feições que os Sóis do meio‑dia parecem ter avivado com o primor de seus lumes—e o fogo de seus verdes.—Ler‑se‑lhe‑ia em cada traço, nos cabelos corridos e ondados, no bigode negro, nos olhos acesos e até nessa morena descor, que pelas válvulas das veias desse homem borbulhavam os fervores de Sarraceno, fundidos na branquidão, de fleugma das raças loiras do Norte—e nos vestígios dos bustos varonis dos soberbos Romanos.—Não havia engranar‑se: era um Espanhol ou um Siciliano.






Ao certo contudo ninguém sabia quem era o Conde Tancredo.—Donde vinha, onde ia, como vivia—calava‑o ele.—Sua vida era um mistério—para uns era um doidejar de mancebo leviano, rebuçado nas orgias' dormindo nos haréns venais do lupanar, embriagado nos seios torneados na fluidez de cores de um corpo que freme nos abraços seminus das cinturas acetinadas no fresco dos cabelos das Frinés belas.






Para outros essa vida louca e perdulária—o isolado de seu palácio fechado durante o dia, o frenesi dos banquetes, o tumultuar das ceias fascinantes pelo quedar das horas mortas—a figura desse palácio mudo, como um fantasma de pedra, durante o dia—e refletindo de noite nas águas esverdeadas seus vinte olhos de luz—parecia acobertar algum crime: era um tapete de felpos séricos e flores turcas sobre uma nódoa ainda úmida de sangue.


Era contudo de nobre raça, uma dessas feições onde logo se adivinha a nobreza de herança—frontes soberbas onde melhor que nos brasões heráldicos se lê o senho do orgulho dinástico. O Conde Tancredo era assim.






Era um homem de estranhas usanças.—Muitos o viram passar do riso mais alegre à spleenalgia mais sombrosa, do volver mais doce de olhos ao cintilar injetado de sangue de um olhar de cólera muda.






E quando dormia—muitas vezes a amante das noites se erguera de seu lado, fria e pávida,—ao ouvir os gemidos cavernosos de seu peito, e os gritos de raiva rangendo entre seus dentes cerrados—no volver da mão negra de um pesadelo.






Isso que uns chamavam sonambulismo acordava em outros idéias de que a palidez desse homem podia ser um crime, e seus pesadelos um remorso






IV






O mancebo desaparecia às vezes do balcão da sacada — e suas passadas ressoavam pelo salão escuro—outras reaparecia na janela, estendendo olhares ávidos aos aléns do Canal.






O Árabe sentado no mármore da escadaria, parecia também esperar.






Disséreis contudo que a pessoa que ele esperava parecia não ser a mesma que inquietava tanto o Conde. A direção de seus olhares era oposta inteiramente.






Cada vez, contudo, que o rosto do mancebo embranquecido pela chuva de luzes lívidas da lua aparecia na sombra de seu manto negro, como no fundo escuro de um painel de Téniers ou Van‑Dyck—a fronte escura do escravo se erguia—seu olhar brilhava mais ardente —e ele parecia dizer:






—Ele espera também!






V






A noite ia límpida e bela—as virações corriam medo no deslizar das ondas. Fazia‑se tarde—só se ouvia às vezes o estalar das águas no cair dos remos reluzentes de umidez, dalguma gôndola solitária, passando muda e negra nas águas.






A noite ia‑se límpida e bela.—O ar respirava a bafagem dos laranjais em flor. Entre o ramalhar das folhas, ao sussurrar das ondas, exalava‑se às vezes a cantilena monótona do barqueiro—ou o descante ao longe de alguma barca iluminada.






VI






O céu se escurecia sob o crepe das nuvens que avultavam no horizonte, em ondas negras. A lua sumira seu fantasma ebúrneo sob as cortinas da escuridão.






Gotas mornas de chuva começavam a cair…






Davam nesse instante 10 horas em S. Marcos.






Os dois vultos—o da janela e o da escadaria


permaneciam ansiosos.






Uma gôndola escura dobrou o canal—e aproximava‑se lenta como uma ave negra aquática, com a cabeça sob a asa, resvalando em seu dormir pelo vidro das águas.






A gôndola vinha sempre—o mancebo permanecia imóvel na escada.






A gôndola parou no cais defronte do palácio






—Aí—aí—disse uma voz argentina de mulher. .






O conde ficou imóvel como bebendo a doçura daquela voz—o Árabe como despertado por ela foi até o cais…






Nesse momento uma forma peregrina de mulher saltava em terra com seus pés mimosos nuns mágicos e curtos sapatos de cetim, envolta numa manta de seda, cujas franjas lhe cobriam o rosto como uma máscara, mas não tanto que algumas doiradas mechas de cabelo lhe não sobressaíssem entre elas…






—É ela—disse o moço pálido, desaparecendo da janela.






—Não é ela—murmurou em sua língua bárbara o selvagem filho do deserto, voltando a embuçar‑se no albornoz e a recostar a fronte escura no frio das pilastras de pedra.






—Ide—disse ela ao gondoleiro, atirando‑lhe uma moeda de oiro. . .






A gôndola partia quando ela passava o peristilo do palácio.






—Adeus, Ali—disse ela, batendo‑lhe com o leque. —Não falas, estátua?






A face queimada do estrangeiro não se moveu.






Sonhava? Esperava?






Talvez ambas as coisas.

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